A internet torna-nos mais infantis? “Quanto mais interagimos com terminais, mais ajustamos as nossas funções cognitivas”

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Teclado de Emojis (Domingo Alvarez E via Unsplash)
Domingo Alvarez E via Unsplash

A internet torna-nos mais infantis? “Quanto mais interagimos com terminais, mais ajustamos as nossas funções cognitivas”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Simon Gottschalk, sociólogo e autor do livro The Terminal Self: Everyday Life in Hypermodern Times (2018) falou ao Shifter sobre a hipotética infantilização da sociedade.

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Este artigo foi publicado na 2ª edição da Revista do Shifter, dedicada à origem do Conhecimento e da chamada Era da Informação. Podes comprá-la, na sua versão PDF, aqui.

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As máquinas estão a ficar mais inteligentes, e nós? Em nome do progresso tecnológico, o mundo foi-se tornando mais rápido e, num certo sentido, aparentemente mais fácil. Será facilitação das mais pequenas e básicas tarefas, que activamente vamos procurando, nos tem tornado preguiçosos e incapazes perante actividades mais complexas? Nos tem tornado mais imaturos? Parece que perdemos algumas das nossas capacidades, e que o nosso cérebro deixou de estar preparado, por exemplo, para a leitura com o tempo e a concentração que um artigo de uma revista ou as páginas de um livro exigem.

Cada vez mais envolvidos e rodeados de discussões em 280 caracteres e de stories que simplificam assuntos complexos, num multitasking entre apps e ecrãs, é irrefutável dizer que a internet influencia a forma como encontramos e relacionamos, mas também como apreendemos e transmitimos informação. Sendo o digital frenético, que tem na velocidade de processamento um dos seus principais argumentos, estará a nossa vida neste meio a alterar os padrões de desenvolvimento? Estaremos globalmente a perder capacidades que demos por adquiridas, como o foco ou a paciência para pensar até nos lembrarmos de algo sem recorrermos frustrados ao Google?

Esta conversa não é nova. Nicholas Carr, sociólogo norte-americano, já se tinha debruçado sobre esta questão da concentração e profundidade no ensaio “Is Google Making Us Stupid”, publicado em 2008 na revista The Atlantic, antecipando o seu livro The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains, lançado dois anos depois. Nicholas desabafava, na altura, num contexto ainda pré-redes sociais, sobre como a internet estaria a moldar o seu cérebro e a sua capacidade de concentração e contemplação: “Ao longo dos últimos anos tenho tido a desconfortável sensação de que alguém, ou algo, tem estado a remexer no meu cérebro, a modificar o meu circuito neuronal, a reprogramar a minha memória. (…) Não penso do mesmo modo que costumava pensar. Sinto isso sobretudo quando estou a ler. Costumava ser fácil mergulhar num livro ou num artigo longo. A minha mente ficava agarrada às voltas da narrativa e às reviravoltas do argumento, e eu passava horas a deambular através de longos trechos de prosa. Agora, isso raramente acontece. A minha concentração começa a andar à deriva após uma ou duas páginas. Fico inquieto, perco o fio à meada, começar outra coisa para fazer.”

A internet não é nem está desenhada para ser sossegada, mas antes um espaço de consumo veloz de informação.

A internet, que começou por surgir para fins militares, tornou-se comercial nas últimas duas décadas e, como todos os meios de comunicação, mudou de forma notável as relações entre os humanos em sociedade. Se por um lado tornou acessível uma quantidade incrível de conhecimento – livros, podcasts, tutoriais, definições, artigos científicos, palestras. Por outro, fomos globalmente habituados a circular numa ínfima parte do seu universo – sites como a Google, Facebook, Instagram ou Twitter constam entre os mais visitados segundo o índice da Alexa e, em média, um internauta passa 2 horas e 22 minutos em redes sociais por dia – Global Web Index, Julho 2020), à espera de notificações e de um novo impulso. Quando estamos a ler fazêmo-lo na diagonal (é a chamada “leitura superficial”), saltando de hiperligação em hiperligação e apanhando algumas frases ou parágrafos-chave de cada artigo.

E se esse novo normal pode parecer uma questão de defeito, podemos interpretá-la também como uma questão de design. Empresas como a Google, Facebook, Amazon ou Twitter parecem ser quem mais beneficia com esta disrupção. Com o tempo que gastamos em feeds, onde somos obrigados a conviver com publicidade; com a ínfima rede de hiperligações que lá seguimos, sendo vigiados por sistemas complexos de trackers e cookies; ou simplesmente com a nossa incapacidade crescente de responder a algo sem pesquisar no Google, puxando pela cabeça. Os algoritmos invisíveis mas omnipresentes, concebidos por homens brancos num escritório algures nos EUA influenciam, sem darmos conta, as nossas decisões, embrenhando-nos num universo de dominação Americana.

Para estas grandes corporações, como aponta Nicholas Carr, a informação é uma matéria-prima que pode ser processada, de forma industrial e em grandes quantidades, por algoritmos que deverão ser o mais eficientes possível, de modo a entregar ao consumidor, como produto final, uma página de resultados de pesquisa ou um feed de notícias também o mais eficiente possível. Google e Facebook não nos querem a ler devagar, podendo isto estar a levar a consequências sociais pouco discutidas, ofuscadas pelas questões da desinformação e dos filtros-bolha – esta internet largamente comercial pode estar a infantilizar-nos. Sem nos apercebermos, os nossos cérebros podem estar a regredir para estados de processamento de informação primários, pouco desenvolvidos, pouco hábeis.

“Num certo nível, o autoritarismo implica a rendição inquestionável a um líder ou figura paterna forte que fornece slogans simples e interpretações simples de situações sociais”

Esta problemática é tratada por Simon Gottschalk, sociólogo, também norta-americano, autor do livro The Terminal Self: Everyday Life in Hypermodern Times (2018) e de um artigo intitulado “The infantilization of Western culture”, publicado no mesmo ano na publicação The Conversation. Em entrevista ao Shifter, o professor da Universidade de Nevada diz que a infantilização da sociedade “começou muito antes” do advento daquilo a que chama de ‘terminais”, isto é, os dispositivos electrónicos, os smartphones, as aplicações, as redes sociais… as tecnologias informáticas em geral. “Consigo pensar em pelo menos quatro propriedades inter-relacionadas das nossas interacções com terminais que induzem orientações infantis: dependência e coerção, personalização, simplificação e vigilância”, aponta. “Quanto mais interagimos com os terminais, mais iremos ajustar as nossas funções cognitivas e orientações emocionais a essas quatro propriedades, e – inevitavelmente – mais as iremos incorporar na nossa consciência e constituição psicológica.”

“Como Sherry Turkle disse, a tecnologia informática dá-nos uma forma de não pensar. Assim, se a busca por informações é um dos dois principais motivos pelos quais as pessoas entram online, a busca no Google (e as interações com terminais de forma geral) induz um envolvimento radicalmente simplificado com as informações. A pesquisa do Google produz “estudiosos do Google” e o que chamo de ‘pensamento de software’. Aqui, a análise de profundidade foi substituída pela abordagem de ‘navegação’”, observa Simon. “À medida que dependemos cada vez mais do ‘conhecimento da Google’ para desenvolver o nosso “conhecimento” sobre um número crescente de questões, descartamos formas mais tradicionais (e infinitamente mais complexas) de conhecer e perdemos a capacidade de compreender como o conhecimento do Google degrada as nossas funções cognitivas.” Simon exemplifica: “O GPS é um grande exemplo dessa degradação da aptidão humana mais básica de geolocalização e navegação no espaço. Com o GPS, não precisamos mais de consultar um mapa, de nos imaginar nele, de nos lembrarmos de marcos importantes, de calcularmos distância e tempo, procurarmos atalhos etc. Essas habilidades complexas que integram corpo, mente, bom senso, imaginação e instinto são todas simplificadas para um ‘seguir instruções’ infantilizado (e enfraquecedor). Essa lógica é replicada em inúmeras outras actividades cognitivas (‘aplicações’) que antes exigiam um trabalho mental complexo.”

As redes sociais levam-nos a um ritmo instantâneo de discussão – não há tempo para discutir, para contrapor pontos de vista, para ter empatia com o outro, ouvi-lo. A efemeridade de cada publicação, associada à rapidez com que surge algo novo para ler e comentar, não dá margem para muita reflexão sobre o ponto de vista do outro e para a construção de contra-argumentação de modo calmo e ponderado. Tudo é simplificado. Não será difícil fazer uma ligação entre esta simplificação, superficialização e infantilização da sociedade e o autoritarismo – como Simon Gottschalk aponta. “Num certo nível, o autoritarismo implica a rendição inquestionável a um líder ou figura paterna forte que fornece slogans simples e interpretações simples de situações sociais”, refere. “A sua principal contribuição para o discurso político não é fornecer soluções racionais e inteligentes, mas (entre outras) encorajar os seus seguidores a sentirem-se bem consigo mesmos – não pelas suas conquistas pessoais mas pela sua identificação devota e ideológica com o líder; culpar quem quer que seja o mau da fita, absolvendo os seguidores de todas as responsabilidades; e permitir que os seguidores expressem (sem censura) raiva/ódio/medo/desprezo/desejo de vingança, etc.”

“A riqueza dos nossos pensamentos, das nossas memórias e até das nossas personalidades prende-se com a nossa capacidade de focar a mente e manter a concentração”.

A mentalidade autoritária – segundo perspectiva Simon Gottschalk – é uma mentalidade infantilizada, que tem por base explicações simplificadas de assuntos complexos, teorias da conspiração, pensamentos binários inflexíveis, medo do desconhecido, a glorificação de um grupo próprio, um desejo de punir quem não concorda, mecanismos de defesa egocêntrica como a negação, entre outros aspectos. “Psicólogos sociais críticos há muito que sustentam que, se os indivíduos podem regredir de um estágio de desenvolvimento para um anterior, sociedades inteiras também podem”, refere o sociólogo norte-americano. “De todas as formas, é claro que a sedução autoritária na esfera política ecoa e nutre essas tendências infantis e, portanto, regressivas.”

Ao entregarmos a nossa habilidade mental, a nossa capacidade de leitura, compreensão, raciocínio, concentração a algoritmos que estão tudo menos preocupados connosco, com a sociedade e com a saúde democrática, podemos estar a abdicar daquilo que nos distingue enquanto seres humanos e que de mais valioso temos: a razão. Os terminais, como Simon lhes chama, funcionam como “portais personalizados para uma gratificação instantânea, constante e sem julgamento de necessidades sociais e psicológicas importantes”, uma espécie de chupeta (pacifier, em inglês) que nos pacifica enquanto adultos. As nossas interacções diárias com smartphones e redes sociais, diz, são tão agradáveis porque normalizam as gratificações infantis e instantâneas; engrandece o exibicionismo, o presente, a celebração constante; corrói a nossa capacidade de empatizar.

“Penso que temos de examinar criticamente como nós usamos (mal) as nossas atitudes cognitivas com o terminal e com os outros no terminal”.

A infantilização favorece o simples, fácil e rápido, o que leva a que determinadas soluções políticas sejam favorecidas face a outras. A construção de políticas democráticas requer debate, compromisso e envolve pensamento crítico. Vive do contraste de diferentes pontos de vista. Plataformas como o Facebook e Twitter “não promovem o diálogo, mas sim despachos curtos e unilaterais que são sempre incompletos e normalmente mal interpretados. Não promovem uma compreensão diferenciada, mas slogans e memes descontextualizados. Por serem cada vez mais personalizados, promovem uma abordagem solipsista da vida quotidiana, da realidade, das relações sociais, do lugar de alguém na sociedade”.

Ler um ensaio, um texto de opinião, uma crónica, um artigo científico ou um capítulo de um livro em profundidade significa ler em silêncio e contemplando cada frase, absorvendo o conhecimento transmitido nas palavras do autor. Significa, nas palavras de Nicholas, aproveitar as “vibrações intelectuais” que essas palavras provocam nas nossas mentes. Passa por relacionar ideias, traçar inferências, descobrir analogias, fortalecer o conhecimento que já temos. No fundo, ler sem distrações. Num outro ensaio, Nicholas escreve que “a riqueza dos nossos pensamentos, das nossas memórias e até das nossas personalidades prende-se com a nossa capacidade de focar a mente e manter a concentração”. (Esta observação leva-nos para outras áreas, como a memória.)

A nossa saúde democrática depende da literacia da sociedade, depende da forma como esta se informa, pensa, reflecte, analisa. Ao tornarmo-nos intelectualmente preguiçosos e infantis, corremos o risco de apanhar os temas pela rama sem ir à raiz das questões; achamos que estamos dentro dos assuntos quando na verdade só apanhamos os títulos, as gordas, os destaques. De certo modo, é a vitória dos feeds alimentados por algoritmos com fins comerciais, que querem velocidade em vez de profundidade, que contribuem para a estupidificação da sociedade – para uma infantilização. “Penso que temos de examinar criticamente como nós usamos (mal) as nossas atitudes cognitivas com o terminal e com os outros no terminal; compreender como as nossas relações com os terminais comprometem as atitudes (sociais, emocionais, cognitivas, físicas) existentes e distorcem as nossas percepções dos outros, do Eu, da realidade e das inter-relações; avaliar as consequências sociais, psicológicas e físicas destas transformações; reconhecer e promover actividades que não estão sincronizadas com a lógica dos terminais; e criticamente avaliar e reorganizar a estrutura da localização dos terminar no nosso dia-a-dia”, conclui Simon Gottschalk.

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