“A(wo)men”. Este não é um manifesto feminista

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“A(wo)men”. Este não é um manifesto feminista

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As perspectivas desinformadas ou infundadas do que é o feminismo são o principal obstáculo para a aceitação do rótulo “feminista”. Por causa da distorção do conceito em ideias radicais ou incoerentes da parte de um grupo pequeno, feminismo torna-se um termo que causa repulsa, desinteresse, como uma incessante chamada de telemóvel de um vendedor a tentar convencer-nos a aderir a um novo serviço. Talvez o presente texto se trate de um manifesto feminista, afinal; mas também aqui estava presente a consciência de que essa designação estaria associada a uma inibição de qualquer atenção posterior.

Um deputado congressista americano fez notícia quando, recentemente, terminou uma oração na Câmara dos Representantes com a expressão “Amen… and awomen”. Possivelmente bem-intencionado, o deputado foi todavia alvo de críticas de democratas e republicanos, homens e mulheres. “Amen” tem raíz etimológica no hebraico, grego e latim eclesiástico, significando verdadeiro, certo, e utilizado como “Assim seja!”. Não possui ligação com a palavra “men” (homens), não estando de forma alguma associado com género. A origem histórica do uso deste termo contrasta acentuadamente com o sexismo que motiva algumas outras expressões linguísticas; neste caso, torna-se uma ridicularização dos esforços pela inclusão ou neutralidade de género. Este momento terá gerado algumas expirações jocosas e partilhas nas redes sociais. Porém, merecerá talvez alguma reflexão, pois esta tratou-se de mais uma ocasião no leque de gestos pouco informados que fundem dois conceitos muito distintos: feminismo e transformação extremista de conceitos de equidade de género.

Antes de prosseguir: acreditar que pizza com ananás não é uma abominação está longe de exigir a abolição de todas as outras pizzas; trocando por miúdos, ser de direita não significa cair no fascismo; “black lives matter” não implica superioridade racial; e feminismo não é, em essência, o contrário de machismo. Manifestações extremas de qualquer ideia prejudicam a sua aceitação.

Mudanças abruptas no nosso quotidiano conseguem ser vertiginosas, quebram a sensação de segurança que a adoção de uma rotina pretende proporcionar. Consequentemente, tendemos a aceitar ideias familiares ou facilmente concebíveis através da nossa realidade. Um exemplo objetivo deste comportamento remete para a situação inicialmente relatada: a religião cristã construiu-se sobre crenças e rituais vigentes nos povos que a adotaram.

Assim, note-se que a luta feminista pela igualdade de género não pretende apagar as inerentes diferenças (complementaridades?) entre sexos. Pretende, sim, que ser mulher não implique que a partida para a prova dos 100m seja feita 200m atrás da linha inicial, em todos os campos da existência. A maior parte de nós não lhe chamaria feminismo quando apresentado assim – é senso comum.

Como em todas as ideologias, conceitos extremos podem emergir, autorrotulando-se da mesma forma que a ideia original mas deturpando o seu conceito. Neste campo, essas manifestações radicalistas costumam prender-se com uma inversão da configuração histórica das sociedades da maior parte do mundo desenvolvido, levando a rejeição dos patriarcados ao extremo da imposição de uma opressão absoluta masculina. Ou recaem num foco forçado e insistente em preciosismos, linguísticos ou não, abafando sob um manto de microproblemas a perspetiva macroscópica da desigualdade de oportunidades de género.

Estas perspectivas desinformadas ou infundadas do que é o feminismo são o principal obstáculo para a aceitação do rótulo “feminista”. Por causa da distorção do conceito em ideias radicais ou incoerentes da parte de um grupo pequeno, feminismo torna-se um termo que causa repulsa, desinteresse, como uma incessante chamada de telemóvel de um vendedor a tentar convencer-nos a aderir a um novo serviço. Talvez o presente texto se trate de um manifesto feminista, afinal; mas também aqui estava presente a consciência de que essa designação estaria associada a uma inibição de qualquer atenção posterior. É preocupante, porém, a rejeição irrefletida dos valores feministas. Rótulos poderão uma importância relativa; o movimento intrínseco à ideia de feminismo, não. Comportamentos opressivos estão (infelizmente) vivos e de saúde. Em Portugal, em 2020, foram assinalados quase 2 casos por semana de mutilação genital feminina – 101 crianças que perderam o direito à sua futura emancipação, de uma forma absolutamente grotesca, que reflete, contudo, práticas com centenas de anos.

Chegar ao pé de qualquer mulher e falar-lhe do desconforto da atenção indesejada – comentários inapropriados gritados por homens na rua, buzinadelas, assédio -, sabendo que ela se relacionará, é o reflexo mais inocente que pode apresentar-se de um problema sistemático. Sentir sorte se nunca escalou para uma situação com consequências mais sérias é sentir sorte por ter nascido num bairro problemático com tiroteios frequentes e nunca ter sido atingido. Na segunda situação, tentaria reabilitar-se a região, providenciar segurança. Nascer no bairro X e não Y não devia, numa sociedade equilibrada, implicar “azar”. Ser mulher também não.

A ideia inerente ao feminismo esclarecido é absolutamente pertinente. O caminho que pretende trilhar é extremamente importante. Não deixar que manifestações ignorantes do movimento feminista deturpem a sua natureza, também. Confinemos ideologias extremistas no vácuo a que pertencem e promovamos ações que refletem progresso na direção certa. Na extenuante prova que é viver, partamos, todos, da mesma linha.

Amen.

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