Pode o TikTok mudar a indústria musical?

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Pode o TikTok mudar a indústria musical?

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Será o TikTok o disruptor da indústria musical que aparenta ser? Fomos procurar respostas com o CYSMUS – o Núcleo de estudos em música e cibercultura, um grupo que integra investigadores e estudantes com um interesse comum: a exploração das diferentes práticas e interações musicais na sociedade do século XXI.

Criada pela empresa chinesa ByteDance em 2016, o TikTok é uma rede social cujo principal propósito é a criação e a partilha de vídeos curtos, com um máximo de 60 segundos. Este conceito é algo semelhante ao da rede social Vine, que acabou em 2016. Mas o TikTok tem algo que o Vine carecia: a possibilidade de introduzir, a partir da aplicação, músicas nos vídeos. Apesar de à primeira vista parecer uma alteração pouco significativa, é precisamente nesta feature que reside o apelo do TikTok. Com a presença de música na plataforma, utilizadores de todo o mundo acabaram por criar a sua própria tendência, inventando coreografias para todo o tipo de músicas, coreografias que mais tarde são reproduzidas por outros utilizadores, criando assim mais uma plataforma onde todos fazem o mesmo, mas de maneiras diferentes. 

Foi essa feature que tornou possível transformar músicas e artistas em verdadeiros fenómenos virais – basta um utilizador com um número considerável de seguidores criar uma dança com a música em questão, para que todos os outros também o façam, criando um efeito dominó interminável. 

Apesar de estar activo há poucos anos, o TikTok já demonstrou inúmeras vezes o seu poder na criação de novas pequenas grandes estrelas no mundo da música. Bbno$, BENEE e SAINt JHN são apenas alguns dos nomes de artistas que deram um salto colossal na sua carreira graças à plataforma. No entanto, o maior exemplo disto mesmo até agora é o de Lil Nas X, que em 2019 esteve durante 17 semanas no primeiro lugar do Top Hot 100 da Billboard, batendo o recorde de 16 semanas anteriormente detido pela música “Despacito” de Luis Fonsi e Daddy Yankee com a contribuição de Justin Bieber, e da música “One Sweet Day” de Mariah Carey e Boyz II Men. 

Depois de uma música se tornar popular no TikTok, verifica-se um aumento quase exponencial no seu número de streams e no número de ouvintes mensais do artista em questão nas mais conhecidas plataformas de streaming. Casos de ascensão repentina ao estrelato não são novidade nenhuma, no entanto, a grande novidade é a quantidade de estrelas que são geradas pela aplicação quase mensalmente. Esta questão ganhou uma dimensão de tal forma considerável que actualmente existe todo um mercado onde as editoras musicais pagam a influencers do TikTok para inventarem uma dança para uma música específica com o intuito de criarem a próxima grande estrela da plataforma. 

Todo este mercado emergente e o facto de a plataforma ter sido construída à volta do consumo instantâneo de uma porção mínima da música utilizada, parecem ser indícios de uma potencial disrupção na indústria musical como a conhecemos: a música torna-se apenas um pormenor do conteúdo publicado e o artista acaba por ser desvalorizado porque nesta transação o foco está no conteúdo e na cultivação do self de quem publicou o vídeo em vez de estar focado no artista. Por outro lado, podemos também estar perante a uma nova vertente da música, cujo principal objetivo é ser utilizada na criação de conteúdo para a plataforma. 

Mas será que o TikTok é o disruptor da indústria musical que aparenta ser? Tentámos encontrar respostas com a ajuda do CysMus – Núcleo de Estudos em Música e Cibercultura. O CysMus é composto por um grupo que integra investigadores e estudantes com um interesse comum: a exploração das diferentes práticas e interações musicais na sociedade do século XXI.

A DESVALORIZAÇÃO DO ARTISTA E A CULTURA DO SELF

O TikTok (e as redes sociais no geral) incentiva um ambiente onde o culto de personalidade é elevado ao mais alto nível, criando um micro sistema de celebridades muito diferente daquela que temos vindo a registar desde o início deste estatuto. Os utilizadores são então socialmente pressionados a cultivar a sua persona e a contribuírem para uma partilha coletiva inconsciente de conteúdos iguais (ou muito semelhantes), em curtos períodos de tempo. “Com o surgimento de plataformas (Facebook, Instagram, Tik-Tok, etc.) em que é precisamente a exposição pública do self que é posta em evidência, seria inevitável que a música não fosse um dos materiais utilizados para esse fim.”, refere João Porfírio. Joana Freitas acrescenta ainda que “as redes sociais e outras plataformas digitais dão a oportunidade a qualquer pessoa de poder criar conteúdos e demonstrar a sua pessoa – seja uma persona ou o que identifica como o seu true self – e a música é inegável neste processo. Na cultura atual de instant feedback e instant reacts, o que resulta também na efemeridade do que é acedido e visto, a música é utilizada não só como uma ferramenta para a produção mas para a própria veiculação dos seus utilizadores.” 

A plataforma é gratuita, o que implica que não existe nenhuma transação monetária envolvida na utilização de músicas por parte de cada utilizador. À primeira vista, isto poderá também levar a uma desvalorização tanto da música como do próprio artista, uma vez que existe uma apropriação sem qualquer custo do trabalho e do nome que o assina. No entanto, estes medos são característicos de épocas de mudança de paradigma. “No final da década de 1990 e especialmente no início da década de 2000, as editoras viviam o pânico do surgimento do download e dos formatos digitais e de como isso iria levar à quebra de vendas de discos em formato físico e à consequente falência das editoras. A verdade é que 20 anos depois existem mais editoras do que nunca, e formatos que se tinha tornado obsoletos, como o vinil ou as cassetes, voltaram a aumentar os números de vendas.”, refere o investigador João Porfírio. 

Por outro lado, em relação à prática de desvalorização do criador da música em questão, André Malhado acrescenta: “Ao longo da história da música as mudanças de paradigma são comuns e surgem como resultado de transformações nos padrões de produção e consumo de determinados géneros musicais. Por exemplo, até ao final do século XX a cultura de electrónica de dança tinha como foco a música e não o artista. O DJ, que era visto como aquele que tocava vinis de outros músicos, começa a compor as suas obras e a apresentar-se em espaços digitais. Neste caso, a personalidade do artista e, por conseguinte, a sua identidade, são construídas e marcadas pela música.” Para além disto, a própria “lógica do artista ser mais importante que a obra ou vice-versa, depende sempre do género musical e do contexto. Se pensarmos na música pop, por exemplo, no caso dos one hit wonders o que fica valorizada é aquela canção específica, sem muitas vezes se saber ou nos lembrarmos quem era o intérprete e muito menos o compositor.”, acrescenta João Porfírio.

UMA NOVA VERTENTE DA MÚSICA

Ao olhar para a maneira como o TikTok está construído, é plausível pensar que estamos perante uma mudança de paradigma muito grande na indústria musical. Esta mudança poderá conduzir à concepção de uma nova vertente musical especializada na tarefa de mediar interações sociais e na consequente catalogação destas músicas como um adereço. No caso concreto do TikTok, já assistimos a eventos que corroboram esta hipótese, como o exemplo de Drake, que criou uma música cuja letra é literalmente uma coreografia (“Toosie Slide”). No entanto, segundo a investigadora Júlia Durand, “este fenómeno não é de todo recente”. “Muitas das obras que integram atualmente um cânone da música ocidental são-nos apresentadas separadamente do seu contexto inicial que, em muitos casos, tinha um propósito assumidamente funcional (acompanhar festas, serões, cerimónias religiosas, etc.)”, contextualiza. 

A esta questão João Porfírio acrescenta ainda que “a música sempre serviu como um mediador de interação social. Independentemente de ser mais ‘funcional’ ou mais ‘artística’, é impossível dissociar o papel social da música da própria música. Aliás, se pensarmos em exemplos altamente canonizados, como Beethoven, por exemplo ,e que ninguém ousa colocar em causa o valor artístico, é muitas vezes usado como música ‘funcional’ e de interação social. Basta fazer uma pesquisa no YouTube, por exemplo, para ver como as mais diversas obras do compositor são usadas em vídeos de música para adormecer, para estudar, para trabalhar, para jantar. Quantas vezes ao ligarmos para uma linha de apoio de uma qualquer empresa ou serviço, nos colocaram em espera ao som de uma obra do já mencionado compositor.”

Em suma, ainda que se apresente como uma novidade que pode desestabilizar completamente a forma como a indústria musical opera, o TikTok é mais um destabilizador entre muitos outros que continuamente “tentam” quebrá-la. Enquanto a tecnologia continuar o seu avanço, criando novas e melhores ideias, continuarão também a surgir desequilíbrios como este, que serão absorvidos mais tarde ou mais cedo. Mesmo antes da criação do TikTok, já outras plataformas exemplificavam uma certa desvalorização da música (o Instagram, por exemplo) e este é um padrão que irá, muito provavelmente, manter-se e crescer no futuro. Resta à indústria tentar adaptar-se com o intuito de “furar” estas complexidades e aos consumidores tomarem uma posição ativa em relação à valorização da arte e, mais importante, dos artistas que a fazem. Plataformas como, por exemplo, o Bandcamp ou o Audius têm o seu foco, precisamente, em valorizar o artista e talvez sejam estas as plataformas do futuro.

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Índice

  • Pedro Caldeira

    Engenheiro Informático de profissão, Pedro Caldeira é um apaixonado por tecnologia e acima de tudo música. Escreve regularmente sobre temas relacionados com tecnologia disruptiva e sobre álbuns e artistas que o inspiram.

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