Um grito mudo: a luta LGBTQI+ na Polónia por igualdade e direitos humanos

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© Grzegorz Żukowski / Manifestantes seguram um cartaz que diz “ódio” (esquerda), “o bem irá prevalecer” (direita), durante um protesto solidário para com os manifestantes LGBT+ detidos e contra a homofobia em Varsóvia, depois dos acontecimentos em Varsóvia do dia anterior, em que a polícia prendeu a ativista LGBT+ Margot e deteve mais umas dezenas de pessoas. 8 de agosto de 2020, Varsóvia
© Grzegorz Żukowski / Manifestantes seguram um cartaz que diz “ódio” (esquerda), “o bem irá prevalecer” (direita), durante um protesto solidário para com os manifestantes LGBT+ detidos e contra a homofobia em Varsóvia, depois dos acontecimentos em Varsóvia do dia anterior, em que a polícia prendeu a ativista LGBT+ Margot e deteve mais umas dezenas de pessoas. 8 de agosto de 2020, Varsóvia

Um grito mudo: a luta LGBTQI+ na Polónia por igualdade e direitos humanos

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Os direitos LGBTQI+ estão a ser ameaçados num dos países da União Europeia mas pouco se fala sobre isso. Nesta reportagem contamos-te parte do que realmente se passa num dos países com liderança mais controversa dos 27, com entrevistas e relatos de activistas locais e outros intervenientes.

“Parte da minha coragem vem da Margot. Ela dá-me esperança e força, e espero que também dê à restante comunidade LGBTQI+ na Polónia”, disse Mariusz Kurc a 21 de agosto, numa videochamada a partir de Varsóvia. No mês anterior, Margot Szustowicz, ativista e co-fundadora da organização Stop Bzdurom (Stop Bullshit), fora detida numa manifestação por “vandalizar” uma carrinha de propaganda anti-LGBTQI+, depois libertada e, já em agosto, detida novamente por colocar bandeiras arco-íris em monumentos em Varsóvia. Dias antes, a 13 de julho, Andrzej Duda, candidato do partido de direita Prawo i Sprawiedliwość (PiS / Law and Justice/ Lei e Justiça), tinha sido reeleito —uma permanência que servia o prenúncio do que ainda podia estar para vir.

À terceira e última detenção de Margot, a comunidade LGBTQI+ organizou-se para um protesto pacífico. Quarenta e oito pessoas foram detidas nesse protesto. De acordo com uma cronologia criada pela ILGA Europa, “xs detidxs queixaram-se de violência policial durante o protesto, refletida em atos como a privação de comida e água e serem agredidas em carros da polícia”. Kurc, que é diretor-chefe da Replika, a única revista LGBTQI+ polaca, reitera que as detenções foram feitas sem critério: “quando Margot foi presa, a polícia começou a deter pessoas aleatórias. Começaram simplesmente a tirar pessoas da multidão e a algemá-las. Entre essas pessoas estava um voluntário da Replika, que estava apenas a fazer uma transmissão em direto para o Facebook. Ele não fez nada de mal, esteve detido por 24 horas e agora está a ser acusado de ser violento — quando ele não foi violento, de todo”. 

Desde a videochamada com Mariusz Kurc, já muito aconteceu — ele próprio dizia que “é impossível prever o que virá”. A 28 de agosto, Margot foi libertada (a previsão do tempo que estaria na prisão era de dois meses) e, pela mesma altura, o episcopado católico Polaco disse que “qualquer ato de violência física ou verbal, quaisquer formas de comportamento ou agressivo contra LGBT+ são inaceitáveis”. Apesar destas declarações públicas, o mesmo episcopado sugeriu a criação de “clínicas para ajudar as pessoas que quiserem voltar a ter a sua orientação sexual natural”, e Mateusz Morawiecki, o primeiro ministro polaco, disse publicamente que concordava com “partes” do que o episcopado disse.  O que está a acontecer à vista de todos na Polónia é “apenas a ponta do iceberg”, garantem alguns, alertando para a complexidade da situação. É complicado apontar quando e como tudo começou, mas há uma certeza que prevalece: não é de agora, mas também não é de sempre. Há quem chame a este momento o Stonewall polaco.

As LGBT-free zones na Polónia e a sensação de não ser bem-vindx

Em março de 2019 Rafał Trzaskowski, Presidente da Câmara de Varsóvia e candidato à presidência na Polónia nas últimas eleições pelo partido Platforma Obywatelska (Civic Platform), assinou a Declaração LGBT, deixando clara a sua posição contra a discriminação da comunidade LGBTQI+. Jarosław Kaczyński, líder do partido PiS, viu esta tomada de posição como “uma ataque a crianças e famílias”, como é possível ler no Annual Report da ILGA Europa. A partir daí, algumas cidades começaram a auto-declarar-se “LGBT-free zones”, em português algo como “zonas livres da ideologia LGBT”.

Mariusz Kurc explica que “por um lado havia um Governo homofóbico, e por outro a comunidade LGBTQI+ estava a crescer na Polónia”. Como resposta a essa visibilidade e confiança LGBTQI+, começaram as ações contra.

Para [nos] situar, o diretor-chefe da Replika recorda essa evolução: “em 2017 tivemos 7 marchas do orgulho na Polónia, o que já era muito, mas em 2018 em vez de 7, tivemos 15. E em 2019, em vez de 15, tivemos 31. A comunidade LGBTQI+ polaca acordou e começou a lutar pelos seus direitos. Depois do Presidente de Varsóvia ter assinado a Declaração LGBT, as pessoas que já eram homofóbicas ficaram enfurecidas, especialmente em meios mais pequenos, e surgiram as LGBT free-zones. Na prática, isso não significa nada, mas é como se dissessem ‘nós odiamos pessoas LGBT’.”  

Lukasz Szulc, académico polaco e investigador na Universidade de Sheffield, especializado em estudos LGBTQI+, contextualiza o Shifter quanto ao passado (não tão) homofóbico do seu país de origem, relembrando que “por exemplo, a Polónia descriminalizou a homossexualidade em 1932, antes da Inglaterra, que o fez em 1967, ou de Portugal, em 1982”. “É importante evitar a narrativa que sugere que existe algo de essencialmente homofóbico nos países da Europa Central e Oriental. Os momentos cruciais [para o panorama atual ser como é], acredito que tenham sido a queda do comunismo na Polónia, em 1989, na qual a Igreja Católica e o Papa João Paulo II tiveram um papel importante ao ajudar a oposição a destroná-lo. Isto significou que depois de 1989, para a sociedade polaca, a Igreja Católica passou a ser vista como um aliado. Eles estavam a lutar connosco pela democracia e pela liberdade. A partir daí a Igreja, enquanto instituição, ganhou muito poder no país, e já era algo conservadora em relação a assuntos relacionados com género e sexualidade.” explica Szulc.

Outro momento que considera essencial é “a entrada da Polónia para a União Europeia, em 2004, e o referendo que mencionava o casamento entre pessoas do mesmo sexo, por exemplo, como algo que teria de ser imposto caso nos juntássemos à UE”. Nessa altura, acredita, “os polacos estavam com algum medo de perder a sua identidade”, que se relacionava com essa aliança com a Igreja Católica.

Mais recentemente, as eleições foram também um acontecimento importante na normalização do discurso homofóbico: com Duda no poder, a proferir frases como “LGBT é uma ideologia, não são pessoas” ou “tem de se proteger as crianças dessa ideologia” que “é pior do que o comunismo”. Szulc acredita que os ataques do Presidente à comunidade LGBTQI+ se devem ao facto de “precisarem de um bode expiatório” para a campanha. Slava Melnyk, diretor executivo da associação Kampanhia Przeciw Homfobii (Campaign Against Homophobia/ Campanha Contra a Homofobia) corrobora esta ideia.

“Durante os últimos dois anos testemunhámos uma grande campanha que usou as pessoas LGBTQI+ como bode expiatório, tornando-as alvo de múltiplos ataques veiculados pelos media públicos, através do partido no poder [PiS], liderado por Andrzej Duda; por isso, os últimos anos têm sido complicados e a situação não parece melhorar, no que toca ao que é dito pelos políticos. Por outro lado, vemos uma enorme mobilização da nossa comunidade e dos nossos aliados”, diz Melnyk.

Izabela Bodzioch, recentemente mestre em Estudos Europeus pela Universidade Católica de Lovaina, cuja tese de mestrado se dedica à análise dos discursos do PiS com referência à comunidade LGBTQI+, tanto na campanha de 2019 como nas eleições parlamentares europeias, partilha que em 2019 os discursos públicos em torno de pessoas LGBTQI+ se focavam, sobretudo, em quatro ideias: “sexualização das crianças”, “família tradicional”, “valores Cristãos”“Europa ideológica”. Izabela refere que “ao utilizar uma retórica relacionada com ‘valores Cristãos’ e Cristianismo, o PiS ilustra quais os valores que um ‘verdadeiro Polaco’ deve ter”. A ideia de uma “Europa ideológica” prende-se, segundo Izabela, com “uma noção de que as elites Europeias estão a corromper os Polacos ‘puros’ e a invadi-los com a sua ‘ideologia de esquerda’”, ao que acresce “o apoio dos partidos de oposição na Polónia”.

A estudante chama a este processo “othering” que, por outras palavras, consiste em tornar quem não se insere nos ideais do PiS n’o Outro. Os membros desta comunidade [LGBTQI+] foram acusados de ser desviantes, e as diretrizes anti-discriminatórias [acusadas] de constituírem uma ameaça para as crianças, o que se manifestou através do discurso da ‘sexualização das crianças’ durante as eleições para o Parlamento Europeu (PE) de 2019. Esses discursos [acima mencionados] não foram referidos apenas nas convenções e manifestos do PiS, mas também nos depoimentos prestados à imprensa e nos perfis das redes sociais oficiais dos políticos do PiS, que seguem a linha do partido neste assunto”, sublinha.

A contínua relação entre o catolicismo e os “ideais de família”, criada pelo PiS, ganha força quando membros da Igreja Católica Romana Polaca prestam declarações que a alimentam.  Em agosto de 2019, Marek Jedraszewski, o arcebispo de Cracóvia, disse em público, numa homilia organizada pelo 75º aniversário da Revolta de Varsóvia, que apesar de a Polónia “já não ser afetada pela praga vermelha [uma referência ao comunismo], isso não significa que não exista uma nova que quer controlar as almas, os corações e as mentes” dos Polacos. Esta “praga”, disse, “não é Marxista, Bolchevista, mas nasceu do mesmo espírito, neo-marxista. Não é vermelha, mas arco-íris”.

Voltando a um dos marcos temporais referidos no início do texto, segundo o jornal Notes From Poland, há apenas um mês, o episcopado católico Polaco “adoptou uma ‘posição no que concerne a questões LGBT+’ ”, depois de se ter reunido na Conferência Episcopal Polaca. No documento agregaram por pontos a sua posição, que defende que se criem “clínicas para ajudar as pessoas que queiram voltar a ganhar a sua… orientação sexual natural”. Ainda que o episcopado afirme que “as pessoas LGBT, como todas as outras, merecem respeito”, refere que é “claramente contrário à natureza humana e ao bem comum (algo como relações entre pessoas do mesmo sexo ou a adopção de crianças por esses casais)” e rejeita “o direito de uma pessoa  auto-determinar o seu género sem referência a critérios objetivos determinados pelo seu genoma e anatomia”.

© Grzegorz Żukowski / O cartaz no centro diz algo como “Estou farto”, durante o protesto solidário para com os manifestantes LGBT+ detidos e contra a homofobia em Varsóvia, depois dos acontecimentos em Varsóvia do dia anterior, em que a polícia prendeu a ativista LGBT+ Margot e deteve mais umas dezenas de pessoas. 8 de agosto de 2020, Varsóvia
© Grzegorz Żukowski / O cartaz no centro diz algo como “Estou farto”, durante o protesto solidário para com os manifestantes LGBT+ detidos e contra a homofobia em Varsóvia, depois dos acontecimentos em Varsóvia do dia anterior, em que a polícia prendeu a ativista LGBT+ Margot e deteve mais umas dezenas de pessoas. 8 de agosto de 2020, Varsóvia

Um discurso modelado pela homofobia amplificado na comunicação social

De acordo com o ranking da Liberdade de Imprensa Mundial de 2020, publicado pelos Repórteres sem Fronteiras, a Polónia ocupa o 62º lugar em 180 países distribuídos pelo mundo e, por comparação, Portugal ocupa o 10º lugar. Quando perguntámos a Mariusz, enquanto diretor-chefe de uma revista LGBTQI+, como era gerir um media como o seu na Polónia, explicou que “o problema é que és completamente independente, mas isso significa que estás por tua conta”.

“Não é que exista censura ou que banam alguma coisa que eu queira escrever, eu posso escrever o que quiser. O problema é que não existem investidores, ou grandes mecenas, não tens apoio nenhum – inclusive da União Europeia. Com tão pouco dinheiro e falta de recursos, a minha voz dificilmente será ouvida”, diz Mariusz. Além da dificuldade no acesso ao investimento, conta que “em alguns casos, as pessoas têm medo de ter a Replika nas suas casas, ou nem sequer sabem que a revista existe”. Até agora, Replika, a revista fundada por Robert Biédron, eurodeputado polaco assumidamente homossexual, existe pelo esforço dos seus voluntários.

A abordagem à temática LGBTQI+ em alguns órgãos de comunicação polacos tem vindo a ser cada vez mais controversa. Lukasz Szulc, que atualmente vive em Manchester, nota que ao longo dos últimos 10/20 anos “a representação de pessoas LGBTQI+ nos media mainstream polacos foi sendo crescente”, mas consegue detetar uma mudança desde que o PiS foi para o poder, em 2015: “tomaram conta do Canal Nacional Público (TVP) — o que eu acho que já diz muito”. “Eles [PiS] apresentaram imagens tão negativas e estereotipadas de pessoas LGBTQI+ que, quando eu estava a assistir, não queria acreditar. Em 2015, naquele que é o maior canal polaco, praticamente todos os dias saía conteúdo anti-LGBTQI+, a acusar homossexuais de sexualizarem as crianças, de serem pedófilos, de destruírem os valores polacos de família, e de imporem a sua visão à maioria das pessoas polacas. Acredito que trabalhar em conjunto com o canal público ajudou muito o PiS”. 

A recém-mestre Izabela relembra que “a constante repetição e pressão destes discursos [homofóbicos] afetou a opinião pública e impulsionou a disseminação do ódio dentro de todas as camadas da sociedade Polaca, especialmente quando a televisão pública é usada como máquina de propaganda pelo partido governante”. “É importante dizer que cerca de 30% da população Polaca depende dos canais públicos para ter acesso à informação. Esse acesso é dado, mas a informação é grande parte das vezes enviesada, carregada de ódio e concentrada num partido político”, continua, na linha do que Szulc havia referido.

Em outubro de 2019, a três dias das eleições parlamentares, passou no mesmo canal um auto-intitulado documentário chamado Invasão que, de acordo com o The Guardian, “prometia revelar ‘a história por dentro, objetivos, métodos e dinheiro por detrás da invasão LGBT’.” Segundo o mesmo artigo, um estudo conduzido pelo Council for the Protection of the Polish Language, que se encontra filiado à Academia de Ciências Polaca, o “TVP mostrava sistematicamente o partido no poder de uma forma positiva”; inclusive, “o que dizia respeito ao PiS era abordado com palavras como ‘reforma’, ‘soberano’, ‘forte’, ‘herói’ e ‘patriótico’, enquanto no conteúdo sobre a oposição tendiam a aparecer palavras como ‘chocante’, ‘escandaloso’, ‘provocação’ e ‘golpe’.”

Um mês depois, em novembro, o Foreign Policy dava conta de “como a Televisão Pública Polaca se tornou um meio para o partido Lei e Justiça (PiS) — e o que isso significa para a democracia”. Neste artigo, um jornalista da TVP, que preferiu manter o anonimato, partilhou que “eles [os políticos do Lei e Justiça] têm a coragem e a audácia para abordar os repórteres e dizer ‘eu quero dizer algo, e tu tens de me gravar.’ Isto é a nossa vida diária” e que “não vão encontrar informação verdadeira na nossa televisão”. Já Katarzyna Chojnowska, uma jornalista que trabalhou durante sete anos na TVP, explicou que quando o PiS foi para o poder passaram a existir termos proibidos como “extrema-direita” e “populismo”. Chojnowska conta ainda ao Foreign Policy que “são banidas críticas ao [Presidente dos Estados Unidos, Donald] Trump” e “ao [Primeiro Ministro Húngaro,] Viktor Orban”, “que são ambos vistos como aliados do PiS”.

Segundo o Annual Review da ILGA Europa, a 17 de julho de 2019 a Gazeta Polska, um jornal assumidamente conservador, lançou uma campanha com autocolantes “LGBT-free zone”. Citando o estudo, “o editor disse que o propósito não era para incitar ao ódio, mas antes para demonstrar que estaria sujeito a censura por imprimir opinião anti-LGBT” — o Governo decidiu não sancionar o jornal para “proteger a liberdade de expressão”. Esta jogada acabou por ser decisiva para aquilo que viriam a ser as LGBT-free zones, que hoje já representam uma grande parte do mapa da Polónia.

À parte dos demais canais ou jornais que seguem a linha de discurso do Governo, há órgãos de comunicação social que se distanciam e que, em alguns casos, mostram o seu apoio com a comunidade: “a Gazeta Wyborcza, depois da detenção de Margot e das restantes 48 pessoas, fez sair com a edição do fim-de-semana um poster com uma bandeira arco-íris. Toda a gente que comprasse o jornal teria uma, e eles diziam algo como ‘ponham nas vossas janelas para mostrar apoio à comunidade LGBT’. Isso foi incrível”, conta o editor-chefe da Replika.

Mais recentemente, Do Rzeczy, uma revista conservadora publicada semanalmente a partir de Varsóvia, lançou um suplemento com o tema “Ideologia LGBT e educação infantil”. “Por que é que os ativistas LGBT estão tão ansiosos para introduzir aulas de educação sexual nas escolas? Por que motivo os subsequentes países ocidentais estão sob pressão e praticamente a privar os pais do direito de criar os seus próprios filhos, entregando essa esfera mais importante da vida humana a pessoas motivadas pela ideologia de género?” são algumas das questões lançadas por Paweł Lisicki, editor-chefe de Do Rzeczy, no editorial. No site da publicação, basta pesquisar “LGBT” para perceber a tendência da cobertura que, com este suplemento, fica ainda mais vincada — a utilização constante do termo “ideologia”, também feita recorrentemente pelo Governo e alguns membros da igreja católica polaca, também não deixa dúvidas. É importante sublinhar que este manual é financiado pelo Ministério da Justiça que, inclusive, já demonstrou a sua posição quanto a este assunto.

Robert Biedron e Anna Grodzka na linha da frente: a presença LGBTQI+ na política polaca

No parlamento polaco existem pelo menos três deputados, assumidamente, LGBTQI+. Krzysztof Śmiszek, Anna Maria Żukowska  e Hanna Gill Piątek não só se assumem publicamente, como são vocais e trabalham em torno da luta pela igualdade, através da aliança da esquerda democrática. Mas este assumir publicamente como gesto político não começa nestes três deputados.

Robert Biedron, um dos fundadores da associação Campanha Contra a Homofobia, criada em 2001, foi eleito como membro do Parlamento Polaco em 2011. No mesmo ano, Anna Grodzka, uma deputada assumidamente Trans, foi também eleita. Nessa altura, segundo Mariusz Kurc, “o tópico de ser Trans tornou-se central no debate público”. “Claro que, ainda assim, muitas pessoas não perceberam ao certo o que é ser-se Trans, mas graças a Grodzka, toda a gente se questionava o que era – e quem era ela. Por causa da urgência em encontrar uma explicação, toda a gente na Polónia sabia alguma coisa”

Em 2014, Biedron foi eleito Presidente da Câmara de Slupsk, cidade com cerca de 80.000 habitantes, onde ficou até 2018. Em 2019 criou o seu partido, Wiosna (“Primavera”) e foi eleito para o Parlamento Europeu. A presença de Biedron na política deu esperança a pessoas como Magdalena Dropek, de 37 anos, citada num artigo do Los Angeles Times dedicado ao político, publicado este ano, ou Grażyna Siedlecka, curadora e fundadora do projeto Fresh From Poland, entrevistada há dois anos pela Dazed.

Na altura em que Siedlecka conversou com a Dazed, Biedron ainda se encontrava em Slupsk, e a curadora referiu-se a ele como “um homem fantástico”, “adorado pela juventude de esquerda e pessoas liberais, porque mudou a sua cidade”. “A cidade dele era homofóbica, mas as pessoas começaram a gostar dele e começaram lentamente a mudar as suas mentes”, sugere. Um exemplo de como Biedron é admirado por essa juventude que a curadora menciona é a pequena entrevista da i-D a Filip, de 21 anos, que lançou o seu nome quando lhe perguntaram quem era o seu exemplo a seguir na cultura mainstream Polaca.

Os direitos LGBTQI+ são uma preocupação constante para a coligação de esquerda em que Krzysztof Śmiszek, Anna Maria Żukowska  e Hanna Gill Piątek se inserem, mas não estão nas ações apenas destes três deputados. Na altura em que Margot foi presa e mais 48 pessoas foram detidas, “alguns deputados de esquerda mostraram o seu apoio, e não foi apenas com palavras”, como conta Mariusz. Alguns membros do parlamento foram até às esquadras da polícia onde essas pessoas estavam, em Varsóvia. Em cada esquadra (eram cerca de quatro ou cinco) estava pelo menos um membro do parlamento. Eles foram realmente aliados, mas infelizmente são uma minoria [no parlamento Polaco]”. 

Na tomada de posse de Andzrej Duda, no início de agosto, dez deputadas, entre as quais Anna Maria Żukowska, vestiram as cores do arco-íris como forma de protesto. “Queríamos lembrar ao Presidente Andzrej Duda que na constituição existe a garantia de igualdade para todos”, disse Anna Maria Żukowska em entrevista à Reuters, na altura. “Não queremos uma situação semelhante à que decorreu na campanha [do PiS], em que o Presidente desumanizou as pessoas LGBT ao negar o seu direito a ser pessoas”, acrescentou.

Segundo dados disponibilizados no Rainbow Map da ILGA Europe, referente ao ano de 2020, a Polónia encontra-se posicionada em 42º lugar, num total de 49 países Europeus, no que toca ao respeito pelos Direitos Humanos e Igualdade. Como seria de prever neste contexto, tanto o casamento como a adopção por parte de casais homossexuais são ilegais na Polónia, e as leis anti-discriminação são escassas. De acordo com a Reuters, no final de julho deste ano o ministro da justiça polaco, Zbigniew Ziobro, disse que “em nenhuma circunstância” a Comissão Europeia poderia forçar a que isso se alterasse, como critério a cumprir para receber os fundos económicos do próximo ano.

© Grzegorz Żukowski / Manifestantes seguram um cartaz que diz “ódio” (esquerda), “o bem irá prevalecer” (direita), durante um protesto solidário para com os manifestantes LGBT+ detidos e contra a homofobia em Varsóvia, depois dos acontecimentos em Varsóvia do dia anterior, em que a polícia prendeu a ativista LGBT+ Margot e deteve mais umas dezenas de pessoas. 8 de agosto de 2020, Varsóvia
© Grzegorz Żukowski / Manifestantes seguram um cartaz que diz “ódio” (esquerda), “o bem irá prevalecer” (direita), durante um protesto solidário para com os manifestantes LGBT+ detidos e contra a homofobia em Varsóvia, depois dos acontecimentos em Varsóvia do dia anterior, em que a polícia prendeu a ativista LGBT+ Margot e deteve mais umas dezenas de pessoas. 8 de agosto de 2020, Varsóvia

União Europeia: do corte de financiamento a LGBT free-zones ao (quebrar de) silêncio de Ursula von der Leyen 

Artigo 21º – Não discriminação
1. É proibida a discriminação em razão, designadamente, do sexo, raça, cor ou origem étnica ou social, características genéticas, língua, religião ou convicções, opiniões políticas ou outras, pertença a uma minoria nacional, riqueza, nascimento, deficiência, idade ou orientação sexual.

  1. No âmbito de aplicação dos Tratados e sem prejuízo das suas disposições específicas, é proibida toda a discriminação em razão da nacionalidade.

in Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia

A postura e o silêncio da União Europeia (UE) foram, até meados do mês de setembro, um dos pontos centrais no discurso de ativistas LGBTQI+ como Rémy Bonny, que se foi encontrando com diferentes eurodeputados para servir de ponte entre a comunidade polaca e a UE. Estive em contacto com pessoas dentro da Comissão Europeia e o gabinete de Ursula Von Der Leyen e eles estão a usar uma abordagem muito pragmática para com a Polónia.” Na altura em que conversámos, a UE tinha negado os fundos a algumas cidades declaradas LGBT free zones, “num projeto muito específico, de Twinning, que acontece entre algumas cidades Polacas e outras algures na Europa”. Era um apoio muito simbólico, no máximo 25 mil euros atribuídos a Governos locais Polacos. E na semana passada uma destas LGBT free-zones deu uma conferência de imprensa com o Ministério da Justiça da Polónia, onde anunciavam que dariam um valor três vezes mais alto do que a Comissão Europeia daria. Portanto, é uma medida muito simbólica e vemos pessoas no terreno, na Polónia, nessas LGBT free-zones e no Governo, a rirem-se com ela”, conta Bonny.

A 18 de agosto de 2020, o site do Ministério da Justiça Polaco publicou uma notícia que dava a conhecer a medida de que Bonny nos falava. Na entrada lê-se o seguinte: O Ministro da Justiça Zbigniew Ziobro e o Subsecretário de Estado do Ministério da Justiça Marcin Romanowski hoje, a 18 de agosto deste ano, entregaram um cheque simbólico ao vereador de Tuchów de um subsídio do Fundo de Justiça para OSP Tuchów para a compra de equipamentos salva-vidas e saúde no valor de 250.000 zlotys polacos (55 892,07€). Trata-se de um apoio ao município, cujo pedido de fundos da UE foi rejeitado pela Comissão Europeia devido ao anúncio pela Câmara Municipal de Tuchów, em Maio deste ano, de uma resolução sobre o fim da ideologia LGBT no município.” 

Para Rémy Bonny, “é óbvio que a Comissão Europeia escolheu a economia antes dos direitos humanos dos seus próprios cidadãos”. O ativista diz que essa opção “não é uma escolha inteligente da parte deles, porque a economia é um problema a curto prazo”, mas “uma Europa sem valores faz com que o nome União deixe de fazer sentido”. Tal como Bonny, Izabela Bodzioch acredita que a posição da UE deve ir mais além: “devia haver uma estratégia que permitisse a União Europeia desenhar as consequências se os direitos democráticos fundamentais forem quebrados em qualquer um dos Estados Membros”. “A resposta devia ser coordenada entre  instituições, mas tendo em conta as diferentes tarefas, a complexidade de cada uma e os direitos de voto dos países envolvidos, o que é um enorme desafio. Ainda assim, um verdadeiro diálogo deve começar, melhor mais cedo do que mais tarde”, acrescenta a Polaca a viver na Bélgica. 

Foi à procura dessas respostas que Izabela, juntamente com outros colegas Polacos a viver na Bélgica, se juntaram na Schuman Square, em Bruxelas, junto aos edifícios da Comissão Europeia, do Conselho Europeu e do Conselho da União Europeia, para chamar à atenção da UE para ter em conta “os direitos fundamentais da comunidade LGBTQI+ na Polónia”. A ação foi “um sucesso” e levou Izabela e os colegas a criar um grupo informal, “Solidarity Action Brussels”, “que tem como objetivo apoiar as minorias perseguidas e lutar pelos direitos humanos básicos para todos”. Depois desta manifestação, contactaram alguns municípios belgas que se encontravam dentro do projeto de Twinning com cidades Polacas, acima mencionado por Bonny. “Eles [os municípios belgas dentro do projeto] têm o direito de saber o tipo de opinião que os seus parceiros de projeto representam, especialmente quando são homofóbicos e discriminatórios. Eu só posso falar por mim, mas suspeito que alguns dos meus colegas partilhem os mesmos sentimentos”.

A opção de fazer a manifestação em frente aos edifícios da Comissão Europeia e do Conselho Europeu deveu-se ao facto de o manifesto da associação de Izabela e dos colegas se dirigir “não só ao Governo Polaco, mas também à União Europeia e à Bélgica”. “No fim de contas, a situação da comunidade LGBT não é apenas uma preocupação Polaca, mas também europeia, e tanto a Polónia como a UE devem estar envolvidas numa solução para a resolver. A Polónia não é capaz de o fazer sozinha, especialmente quando é o partido a governar que propaga esta narrativa prejudicial e, ao mesmo tempo, tem controlo dos seus embaixadores e outros representantes”, partilha.

A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada em 2000 pela União Europeia e os seus Estados Membros, deixa claro no 21º artigo que ninguém, em circunstância alguma, pode ser discriminado pela sua orientação sexual. Como lembra a Fundamental Rights Agency (FRA), num manual que reúne a legislação europeia anti-discriminação, “com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2009, a Carta dos Direitos Fundamentais adquiriu força jurídica vinculativa”. “Os Estados-Membros são obrigados, por conseguinte, a respeitar as disposições da Carta, mas apenas em sede de transposição e aplicação da legislação da UE. Foi acordado um protocolo à Carta em relação à República Checa, Polónia e Reino Unido, no qual se reafirma explicitamente tal restrição”, lê-se no mesmo.

Por muito que existam condicionantes na atribuição de fundos que tenham que ver com um comprometimento com a não-discriminação, Rémy Bonny relembra que acaba por ser muito vago — e que isso beneficia casos como o da Polónia ou da Hungria. Apesar de, segundo Charles Michel, pela primeira vez existir possibilidade da libertação de fundos do Quadro Financeiro Plurianual da União Europeia ser associada ao cumprimento do Estado de Direito, podendo ser um critério importante de decisão, Bonny refere que nas conclusões do Conselho Europeu, existe um artigo que mostra que existe a possibilidade do Estado de Direito – condicionalmente”, mas que “se o lermos bem, vemos que se trata de um parágrafo vago”. “Se há algo que aprendi na política é que quando algo não está escrito de forma clara, não existe. Então, o meu maior receio é que é que só quisessem isto como fachada, mas que no fim não faça diferença nenhuma.”

O silêncio de Ursula Von der Leyen, que durante o mês de agosto se tornou ensurdecedor para a comunidade LGBTQI+ e os seus aliados, foi quebrado a 16 de setembro no primeiro discurso sobre o Estado de União: eu não vou descansar no que toca a construir uma União de igualdade. Uma união em que se pode ser quem se é e amar quem se quer, sem medo e recriminação”, disse. “Sermos nós mesmos não é uma ideologia, é a nossa identidade, e ninguém a pode tirar. Por isso quero ser muito clara: as LGBTQ free zones são zonas livres de humanidade e não têm lugar na nossa União.”

Recentemente, após as declarações de Von Der Leyen, foi entregue a Helena Dalli, comissária europeia para a Igualdade, uma petição com cerca de 250 mil assinaturas que chamava a atenção para a urgência de agir na Polónia, em defesa dos direitos humanos. Neste momento, a esperança vai sendo alimentada a cada passo que vá sendo dado nesse sentido.

Emigrar à procura de liberdade para se ser quem se é 

Já há algum tempo que Polacos LGBTQI+ começaram a procurar outros lugares em que se sentissem mais seguros para viver e serem quem são. Numa reportagem publicada na BBC, em julho deste ano, o tema já era levantado por pessoas de diferentes gerações que ora se mudaram para outros países da Europa, ora decidiram ficar como ato de resistência.

Em 2019, Lukasz Szulc escreveu Queer #PolesinUK, um estudo dedicado à emigração de pessoas Polacas para o Reino Unido, as suas motivações e as diferenças que sentiam na vida de todos os dias. A primeira questão que colocou aos seus entrevistados foi a principal razão para ter emigrado e 31% respondeu que se devia a questões relacionadas com trabalho; ainda assim , ¼ dos participantes mencionou questões relacionadas a aceitação da comunidade LGBTQI+. “Claro que nem todas se relacionam com o facto de o PiS ter ido para o Governo em 2015, mas ainda assim algumas pessoas mencionaram que sim, isso contribuiu para que se mudassem. Um exemplo é uma mulher lésbica, nos seus 40, que me disse que não queria voltar para a Polónia porque se eventualmente  saíssem, um dia, da União Europeia, iria ser muito mais difícil para a comunidade LGBTQI+, por exemplo para mudar o género legalmente”, Szulc partilhou.

Izabela, que continua a viver em Bruxelas e não planeia regressar para a Polónia, sublinha que “parte da juventude Polaca percebeu que a situação está a ficar fora de controlo, mas em vez de voar, tem descoberto coragem e força nela mesma, e decide ficar, lutar, dar apoio, continuar esta batalha por um amanhã melhor”. “Ao mesmo tempo”, continua, muitos já se foram embora, ou estão a planear fazê-lo, porque não conseguem lidar com o ódio e discriminação que os oprime e se dirige a eles; mas ao mesmo tempo, se todos eles forem embora, quem vai lutar pelos direitos a um futuro mais justo para as próximas gerações de jovens Polacos?”

Szulc não tem dados recentes sobre a emigração na Polónia, mas especula que “depois do que tem acontecido recentemente e toda a retórica contra pessoas LGBTQI+, muito mais pessoas vão pensar em emigrar”. Esta sensação deve-se não só ao trabalho que foi fazendo em torno do tema nos últimos anos, mas também ao que vai lendo em grupos de Facebook que reúnem Polacos LGBTQI+, de que faz parte: “há cerca de três dias alguém publicou num desses grupos ‘sabem alguma coisa sobre obter asilo com base na identidade de género ou orientação sexual, em algum país ocidental, tendo em conta o que se passa na Polónia neste momento?’.”

Szulc menciona cidades como Barcelona ou Berlim, conhecidas por serem LGBT friendly, entre as escolhas de quem tem o privilégio de poder procurar um lugar para poder ser e estar em liberdade. No fim de contas, permanece a esperança de, um dia, emigrar não se prender obrigatoriamente com questões relacionadas com homofobia e discriminação. Para quem fica, a luta por um amanhã mais justo continua diariamente e tem riscos inerentes, sobretudo quando se dá o corpo ao manifesto. “A batalha de libertar a Margot foi ganha, mas temos de estar preparados para a próxima ronda. A situação na Polónia está a ficar cada vez mais apertada, quase como uma bomba relógio que vai, mais cedo ou mais tarde, explodir”, conclui Izabela.

No dia 27 de setembro, 50 embaixadores na Polónia, representantes de diversos países do mundo, incluindo o embaixador português Luís Manuel Ribeiro Cabaço, assinaram uma carta aberta dirigida ao Governo polaco, coordenada pela embaixada belga na Polónia, na qual expressam o seu apoio pelo esforço que tem sido feito para que se ganhe consciência pública quanto ao que se passa com a comunidade LGBTQI+ na Polónia. “Afirmamos a dignidade inerente a cada indivíduo como expressada na Declaração Universal dos Direitos Humanos”, sublinham a meio da carta. O que poderá acontecer após estas manifestações de apoio, que começam a surgir em força por parte de outros países, é impossível de prever; mas no fim de contas, uma coisa é certa, a discriminação enquanto violação de direitos humanos não pode passar incólume a bem da integridade do que foi construído em União.

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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