Com tanta pressa para viver, ficamos sem tempo para estar doentes

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Com tanta pressa para viver, ficamos sem tempo para estar doentes

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Uma reflexão (tardia) sobre o Dia Mundial da Saúde na Sociedade do Cansaço.

Ontem comecei o meu dia a tentar escrever um artigo para o LinkedIn sobre o que fiz entre 2019 e agora. Há muito tempo que acho que tenho escrito e partilhado muito pouco sobre o que tenho alcançado a nível profissional. E 2019 foi certamente um ano em que senti que alcancei (e atrevo-me até a dizer que ultrapassei!) muitos dos meus objetivos e sonhos profissionais. Foi o ano em que risquei alguns itens da minha lista de objetivos — mas, surpreendentemente, foi também o período em que fui menos ativa na rede social na qual costumava postar, religiosamente, todas as metas que conseguia alcançar. Mas porque é que parei?, podem-se perguntar. Porque estava completamente exausta. E em burnout.

No lado não-tão-glamoroso do meu 2019, aquele que ninguém viu em nenhum dos meus perfis nas redes sociais, estava completamente desgastada. 2019 (e o início de 2020) foi o ano em que mais me questionei sobre tudo: o verdadeiro significado de conceitos tão “básicos” como casa, felicidade e amor, e se renunciar a saber o que realmente significavam por causa de tudo o que estava a fazer valia realmente a pena. Que não seja mal interpretada: sinto-me muito honrada, agradecida e feliz por ter participado em todas as coisas que fiz no ano passado. Mas cheguei a um ponto em que não conseguia aproveitá-las da melhor maneira. Começou a parecer-me que apenas aceitava mais projetos porque estava numa competição… comigo mesma. Estava a tentar empurrar-me um bocadinho mais de todas as vezes, como que a tentar perceber quando atingiria o meu ponto de rutura — que eventualmente chegou em 2020, enquanto tentava equilibrar um mestrado (que achava que não era qualificada o suficiente para estar a fazer), um estágio (no qual achava constantemente que tinha um fraco desempenho porque sou muito dura comigo mesma) e, obviamente, uma pandemia (que elevou a minha ansiedade a um nível recorde). Basicamente, quando o meu síndrome de impostor estava no seu auge, e me toldava a visão sobre o sangue, suor e lágrimas que derramei por todos os meus projetos.

Esta semana, muito tempo depois do diagnóstico, terminei a leitura que conseguiu pôr por palavras a competição solitária que sempre senti mas não era capaz de identificar. Li o “Sociedade do Cansaço” do filósofo coreano Byung-Chul Han, e muitas coisas começaram a fazer sentido. Na minha modesta opinião, não foi o livro mais brilhante que já li, mas com certeza que me ensinou uma coisa ou duas sobre a minha necessidade constante de provar o meu valor a todos e a cada um. Mesmo que isso signifique partilhar apenas a parte “bonita” e “instagramável” das coisas — o choro frequente e a vontade de desaparecer, esses nunca transparecem. Segundo Byung-Chul Han, somos incapazes de lutar contra estes sentimentos menos positivos porque existe um excesso de “positividade” à nossa volta: não existe nada que nos “ameace” (como um vírus, algo externo), toda a gente parece igualmente feliz, quase como que de uma maneira padronizada. E isso não nos ajuda a criar os “anticorpos” necessários para combater essa positividade externa, que acaba por se multiplicar dentro de nós de forma quase “cancerosa”. Esta positividade leva-nos a querer fazer — e mostrar o que fazemos — cada vez mais. Quando damos por nós, estamos perdidos naquilo que supostamente seria o nosso caminho para a autodescoberta, para a felicidade padronizada. Quando damos por nós, estamos a ter crises de identidade e a tentar organizar a nossa vida toda numa página do Notion numa quarta-feira de madrugada. No fim, parafraseando o filósofo coreano, ficamos esgotados pelo esforço que fazemos para sermos nós mesmos. Mesmo com toda a liberdade do mundo, agredimo-nos constantemente por não sermos tão bons como os (ou tão iguais aos?) outros. Somos, ao mesmo tempo, exploradores e explorados. E acabamos por nos tornar em máquinas que sobreaquecem pelo excesso de multitasking.

E isto deu-me que pensar. Muito. Tanto que demorei imenso tempo a ler um livro que tem “apenas” 47 páginas. Um amigo perguntou-me até “Não achas que é irónico teres demorado tanto tempo a ler um livro chamado Sociedade do Cansaço?”. E, sim, acho. Mas foi ainda mais “irónico” que, nesse mesmo dia, uma amiga me tenha confidenciado que está cansada da nossa área, a das Relações Internacionais. “A nossa área está cada vez mais competitiva”, disse-me. “Não sei se quero isto para a minha vida. Por muito que goste, estou a ficar super desmotivada”. A competição de que ela falava não era apenas aquela entre candidatos a uma vaga de estágio ou de emprego. Era, talvez em maior escala, aquela que sentimos interiormente. Hoje em dia, se queremos singrar (atrevo-me a dizer que em qualquer área!), temos de ser os nossos próprios maiores relações públicas. Temos de saber vender até a coisa mais pequenina e irrelevante que fizemos como se fosse a mais exclusiva e importante de todo o mundo. Sem esse tipo de hustle, por muito bons profissionais que sejamos, nunca vamos estar na linha da frente. Estamos condenados a viver sob a ideia que a nossa sociedade tem de fracasso e esquecimento (ênfase em “ideia que a nossa sociedade tem”). E, olhando para trás, foi por ambicionar estar na linha da frente que cheguei ao ponto a que cheguei no final de 2019. Ao burnout. Burnout esse que, a princípio, não quis aceitar que sofria, simplesmente porque achava que não tinha feito o suficiente (sim, o s-u-f-i-c-i-e-n-t-e) para ter um.

Portanto, no meio disto tudo, tornou-se um tanto irrelevante fazer o tal artigo. Estamos em 2020 e já toda a gente partilhou o seu exercício físico diário em casa no Instagram e uma dúzia de objetivos profissionais que alcançaram durante a quarentena no LinkedIn. Querem saber os meus? Aprendi a desanuviar. Aprendi o que casa significava, experienciei um bocado de felicidade e acho que senti amor algures pelo meio. A minha rotina diária, pela primeira vez desde que comecei a estar obcecada com o meu futuro (lá para 2016, no 2.º ano da primeira licenciatura), inclui descansar, refletir e até ler (por prazer), uma paixão que tinha esquecido durante muito tempo. E precisei duma pandemia para isso. Portanto, o LinkedIn não precisa de mais nenhum post meu a tentar anunciar ao mundo mais um dos projetos em que estive envolvida. Pelo menos, não hoje. 2020 foi também o ano em que decidi desistir um bocadinho das redes sociais. Não ter os padrões de outros para me comparar a toda a hora (ou até adicionar aos próprios padrões dos outros com a minha felicidade fabricada para as redes sociais) foi libertador. E até diria para o tentarem fazer também um dia destes, mas isso tornou-se numa tarefa quase impossível nesta nossa geração que não desliga. Mas, pelo menos, permitam-se aproveitar os pequenos prazeres da vida que ainda nos restam, desde dançar freneticamente enquanto ouvem música aos berros no quarto até simplesmente ativar o modo estrela-do-mar em cima da cama e olhar para o teto durante umas boas 4 horas num sábado à tarde.

Dia 10 de Outubro foi o Dia Mundial da Saúde Mental — mas hoje escrevo isto por minha conta própria e risco: o de ser considerada fraca, louca até, por falar disto. O estigma e a discriminação que pessoas com problemas de saúde mental ainda sofrem constantemente é chocante. Muitas vezes chamam-me a atenção por falar tão abertamente sobre os meus. Consigo ver as pessoas a ficarem desconfortáveis quando o faço — mas, mais importante ainda, consigo ver também o brilho nos olhos daqueles que não se sentem tão bem e que finalmente ouvem alguém a pôr por palavras o que sentem. E, por muito que falar disto na internet geralmente nos dê algum tipo de validação nos comentários, se falássemos frente a frente com algumas dessas pessoas a reação poderia ser bem diferente. Mas vamos aprender a não nos preocuparmos, a não nos desculparmos. E a não aceitar o muito comum (que ouço mais vezes do que gostaria) “Mas não pareces nem um bocadinho deprimida!”.

Apenas seremos capazes de ultrapassar os nossos problemas quando falarmos abertamente deles. Um amigo disse-me uma vez que se sentia empoderado e livre quando falava dos seus problemas. “Como se um peso me saísse de cima dos ombros”. Aparentemente, somos a geração com menos pudor em falar dos seus problemas — até há memes sobre isso, a comparar-nos aos boomers e a sua vergonha em endereçar problemas de saúde mental. Então, vamos fazer jus a isso. Vamos começar a falar abertamente sobre os nossos problemas, vamos livrar-nos do fardo que carregamos aos ombros. Portanto, deixem-me começar por fazer aquilo que devia ter feito no início deste texto: Olá, o meu nome é Catarina, tenho 24 anos e sofro com depressão e um distúrbio de ansiedade. E tu?


Texto de Catarina Neves

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