Morrer 7 vezes em palco por Maria Callas 

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Morrer 7 vezes em palco por Maria Callas 

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"7 Deaths of Maria Callas" surge de uma vontade antiga de Marina Abramović de homenagear a soprano que diz ser a sua "inspiração".

“Depois desta ópera vou estar preocupada com a vida, não com a morte.” Foi desta forma que Marina Abramović falou de “7 Deaths of Maria Callas”, a ópera que criou para homenagear Callas que, graças à Covid-19, também teve uma estreia online no passado dia 5 de setembro: como se se tratasse de uma superação. Não fosse todo o trabalho de Abramović sobre superação — como sublinhava Judith Thurman num perfil da artista, que escreveu para a New Yorker há dez anos.

Foi na sala principal da Bayerische Staatsoper, em Munique, que Marina Abramović surgiu, deitada numa cama a respirar, embalada pela orquestra que, ao longo de cerca de duas horas, revisitou parte do repertório de Callas. Em palco, deitada, e na projeção de vídeo, em movimento, Marina carrega consigo Maria e a dor de “morrer de amor”. Willem Dafoe surge em vídeo a relembrar Aristóteles Onassis, que Callas amou até ao fim da vida, motivador desse sofrimento.

“7 Deaths of Maria Callas” surge de uma vontade antiga que, já em 2016, Marina tornava pública em “Walk Through Walls”, a sua biografia. “Callas era a minha inspiração. Naquela altura já tinha lido todas as suas biografias e visto todo o seu trabalho incrível no cinema. Sentia uma conexão muito poderosa com ela. Como eu, ela era Sagitário; como eu, ela tinha uma mãe terrível. Tínhamos parecenças físicas uma com a outra. E embora eu tivesse sobrevivido a um desgosto amoroso, ela morreu com o coração partido”, escreve quase nas últimas páginas.

Callas: Morrer de amor, de muitas formas 

É curioso que ao procurarmos “Maria Callas death” [morte de Maria Callas] no Google, apareça imediatamente a pergunta “Did Maria Callas die of a broken heart?” [Maria Callas morreu de desgosto amoroso?]. E por muito que a ideia de “morrer de amor” possa soar apenas a uma ideia romântica, os especialistas dividem-se quando têm de afirmar se esta pode efetivamente ser a causa para uma morte. Num artigo da Harvard Medical School publicado em 2012, é possível ler que “há alguns séculos, a resposta teria sido sim — “mágoa” era amplamente considerada uma causa de morte”, “há trinta anos, cientistas desmentiram uma ideia tão romântica”, mas “agora estamos a caminhar novamente para o sim, motivados por exemplos documentados de más notícias que desencadeiam ataques cardíacos, estudos que acompanham as repercussões de luto, ou as consequências de desastres naturais ou provocados pelo homem, e uma melhor compreensão de como o stress e a depressão afetam o coração.”

Para todos os efeitos, a causa da morte de Maria Callas foi um ataque cardíaco. Despediu-se da vida no apartamento em que vivia em Paris, no dia 16 de setembro de 1977, e deixou para a eternidade a sua voz. Nesta “7 Deaths of Maria Callas”, Marina Abramović convoca sete mortes de sete óperas diferentes já cantadas por Callas: de tuberculose, em La Traviata; num salto, em Tosca; estrangulada, em Otello; esfaqueada, em Carmen; queimada viva, em Norma; de loucura, em Lucia di Lammermoor, e de radiação, em Madame Butterfly (a única alterada por Marina, já que no original se trata de um suicídio). A última é a morte da própria Callas, encenada por Marina, que finalmente se levanta da cama quando surge no último ato, num novo cenário.

“Bruna, onde estás?” ouve-se pouco antes do fim. Esta pergunta é o fechar de um ciclo de referências visuais em toda a ópera: Bruna era a empregada doméstica de Callas, que viveu consigo em Paris até ao seu último dia, e que teve um papel fundamental nos últimos anos da sua vida; em homenagem a si, todas as cantoras que integravam o elenco além de Marina surgiam com uma “farda francesa”, branca e cinzenta. Porque Bruna esteve sempre lá.

Dessacralizar a ópera, humanizar o sofrimento

Este formato pop, quase familiar, de ópera, pensado por Abramović, convoca alguns dos artistas que orbitam em torno da vida e obra da performer. Um deles é Riccardo Tisci, o diretor criativo da Burberry, responsável pela criação de figurinos que, curiosamente, a conheceu depois de ambos sofrerem um desgosto amoroso. Numa conversa a propósito desta colaboração, recordam que depois desse desgosto decidiram ir de férias para Santorini. “A dor uniu-nos e tornou a nossa amizade tão forte”, disse Marina.

“A ópera é uma espécie de dinossauro, é esta forma de arte tão antiga, e precisa de sangue novo e de ser vista de outra forma, por isso a única pessoa com quem eu queria trabalhar nestes figurinos elaborados era o Riccardo”, explicou no mesmo vídeo. Essa nova forma de ver, que não começa apenas com “7 Deaths of Maria Callas” mas que não é tão vista em salas de ópera mais clássicas, passou pelos figurinos e pelo entrelaçar de médios, mas também pelo cruzamento com quem trabalha essa “forma de arte tão antiga” numa lógica diária.

Em entrevista à Dazed, explicou que “toda a equipa foi fundamental para ultrapassar o desafio” de adiar a estreia e ter de ensaiar em tempos de pandemia. Explicou também que “uma ópera normal dura três, quatro, ou cinco horas mas, porque morrer é tão curto, esta tem apenas uma hora e meia”. E, na verdade, desafio não foi só para Marina, que teve de se adaptar ao processo de construir e ensaiar uma ópera, mas também para a Bavarian State Orchestra, que pela primeira vez trabalhou consigo.

Nas conversas de entrada da apresentação online de “7 Deaths of Maria Callas”, Selene Zanetti, uma das sete cantoras (todas elas sopranos, como Callas), partilhou que “durante o processo, ela [Marina] parecia uma fénix”, “sempre com algo novo para partilhar”. Trabalhar com Marina Abramović pode ser realmente desafiante, mas o feedback dos elementos da equipa que tiveram a oportunidade de falar publicamente é unânime: acaba por valer a pena.

Ao trocar as voltas ao formato clássico da ópera e, ao mesmo tempo, pelo simples facto de ser a responsável por o fazer, Abramović abriu a porta a novos públicos e mostrou a antigos que todos os formatos podem ser muita coisa.

É com “Casta Diva”, na voz da própria Callas, que a ópera termina e as luzes se apagam. No centro, Abramović, com 73 anos, dá corpo à voz imortal de Callas, que morreu aos 53. Assim, transforma em arte a dor que Maria não curou em vida e atreve-se a fazê-lo por ela.

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  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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