Assédio e abuso sexual na indústria dos videojogos: cada vez mais relatos, poucas mudanças

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Foto de Alexey Savchenko/via Unsplash

Assédio e abuso sexual na indústria dos videojogos: cada vez mais relatos, poucas mudanças

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Nas últimas semanas, foram várias os testemunhos e acusações que chegaram às redes sociais, inspirando ainda mais indivíduos a contar publicamente as suas histórias pessoais, revelando um lado obscuro de uma indústria em crescimento.

As alegações de assédio e abuso emocional e sexual têm sido cada vez mais, uma questão global e sistémica, que se vai revelando à medida que as mais diversas indústrias atravessam o seu seu momento #MeToo. Depois do cinema, onde nomes icónicos como Weinstein ou Kevin Spacey foram expostos, começam a surgir revelações em nichos da indústria do entretenimento, nomeadamente naqueles em que os homens têm um papel preponderante. No último mês foi o sector do gaming a ser atravessado por uma onda de denúncias envolvendo elementos de todas as áreas e levando as empresas envolvidas no mercado a rever as suas políticas de apoios.

Os holofotes estão na indústria dos videojogos. Nas últimas semanas, foram várias os testemunhos e acusações que chegaram às redes sociais, inspirando ainda mais indivíduos a contar publicamente as suas histórias pessoais, revelando um lado obscuro de uma indústria em crescimento. As alegações surgiram principalmente no Twitter e as histórias abrangem várias empresas de alto nível, incluindo figuras em posições de poder. Embora um grande número de pessoas esteja agora a “chegar-se à frente”, contam histórias do passado, mostrando que esta situação não é nova, num momento que acima de tudo é visto como uma reposição da justiça. Em cada nova história reconhecem-se as mesmas falsas promessas e reverbera a sensação de que pouco tem mudado.

Twitch

Recentemente, foram mais de 70 as pessoas da indústria dos videojogos que vieram a público apresentar acusações de assédio, discriminação de género e agressão sexual, quer em interações online como em eventos organizados, como convenções. As vítimas partilharam as suas histórias em declarações no Youtube, Twitter, Twitch e na plataforma TwitLonger. A onda de acusações despoletou ações de várias empresas de jogos, entre elas a Twitch, gigante do streaming, que começou a banir permanentemente utilizadores que se viram alvo de acusações, uma acção proactiva e antecipando o decurso da justiça que lhe têm valido algumas críticas. Segundo o site HappyGamer, “a Twitch tem distribuído proibições como doces durante o Halloween…”, em muitos casos, a plataforma não dá sequer justificação para o fazer.

Apesar de o assunto ganhar agora mais expressão, as alegações de assédio e abuso entre os membros da comunidade Twitch já datam desde 2012, sem que até este mês a plataforma tenha feito grande coisa. Em 2015, ressurgiram as acusações, com uma peça da Bloomberg a mencionar que as streamers tinham de lidar com assédio diariamente. Em 2016 um documentário da Fusion repete a conclusão. Em 2017 é o blog de gaming Kotaku a avançar com a mesma ideia. Em 2018 a Twitch reviu as suas regras mas nem por isso as parece ter posto em prática. Foi agora, em 2020 que começaram a surgir, pelo menos de um modo mais visível as punições sobre os membros envolvidos nestes escândalos, embora nem sempre de uma forma totalmente justificada e perceptível.

Guy Beahm, mais conhecido como Dr. Disrespect, é um dos casos mais recentes de utilizadores que viram a sua conta banida, por um motivo que permanece desconhecido. Beahm era afiliado da plataforma e viu o seu login revogado, numa acção que tem valido críticas a Twitch pela forma inadvertida como age. A Twitch ainda não enviou uma explicação do sucedido, nem os fãs conseguiram identificar nenhuma mudança no caráter ou de comportamento nos vídeos Beahm de que pudesse apontar para um motivo, sobram assim especulações sobre o seu envolvimento numa destas histórias. Casos como este, como se lê pela imprensa especializada acabam por desequilibrar a balança da norma habitual na Twitch; uns são banidos sem um motivo plausível e outros vivem para quebrar as regras e sair impunes, tudo isto porque a plataforma não oferece nenhuma declaração sobre o motivo pelo qual os utilizadores estão a ser banidos, mesmo quando os canais proibidos aparentam não ter ultrapassado os limites.

Empresas

Já na Ubisoft, contam-se alegações feitas contra vários funcionários da empresa, incluindo os vice-presidentes Maxime Béland e Tommy François. Yves Guillemot, CEO da Ubisoft, assumiu parte das acusações e enviou um email aos cerca de 15.000 funcionários a lamentar a situação: “Estou profundamente afetado pelo que tenho lido e ouvido nos últimos dias. Gostaria de expressar minha profunda solidariedade a todos os que foram diretamente feridos e garantir que seguirei pessoalmente cada uma das situações relatadas. Essas ações estão em total contradição com nossos valores e com o que eu quero para a Ubisoft.”

A polémica instaurou-se principalmente à volta de Tommy François, vice-presidente da equipa editorial, depois do jornal francês Liberátion recolher e publicar testemunhos de 20 ex-funcionários da empresa. Tommy é descrito como um “manipulador tóxico” contra as mulheres e, às vezes, homens, beneficiando-se da impunidade total, apesar de inúmeros incidentes relatados. Tommy é visto como o líder de uma espécie de “boys club” em que se tornou a empresa, sendo protegido por Serge Hascoet, o chefe criativo, e o responsável por ter colocado a Ubisoft no top 3 a nível mundial.

Tommy entrou na Ubisoft em 2006 e em 2015 foi promovido a vice-presidente, tornando-se uma das figuras da empresa, ao ponto de ser o orador em conferências da E3 – terá sido todo este poder que lhe permitiu escapar durante vários anos das acusações. Todos os relatos descrevem um homem incapaz de interagir com mulheres sem fazer alusões sexuais constantes.

Eis um de muitos testemunhos acerca do vice-presidente, recolhidos no site do Liberation e feitos por uma das vítimas (com primeiro nome fictício):

“Todas as pessoas na Ubi vão falar contigo nalgum momento sobre a festa de Natal.”, diz Max. Uma noite organizada pela Ubisoft, que paga o hotel a todos os funcionários presentes em França. Com álcool ilimitado. “Foi a minha primeira festa de Natal”, relata. ”Eu reconheci o Tommy, ele era um pouco uma lenda na época, um homem sério, mas divertido. Ele estava bêbado e começou a falar sobre as suas viagens etc. antes de propor, com o meu amigo, divertir-se um pouco, enquanto batia no nariz. Ele emitiu uma energia super negativa, estávamos a tentar desviar, mas ele estava a seguir-nos. Antes de sair, ele apalpou as nossas nádegas e saiu com um sorriso. Realmente assustador.”

“Toda a gente o protegeu” foi a frase mais dita pelas vítimas, reforçando a imponência de Tommy à custa da relação com outros colegas em altos cargos da empresa da empresa. Este caso em específico é de uma complexidade extrema e só mais um a juntar à lista de casos que ocorreram nos últimos tempos e que felizmente tiveram a sua exposição.

Também Ashraf Ismail, diretor criativo do jogo Assassins Creed Valhalla foi acusado de casos de abuso, tendo deixado o projeto após múltiplas acusações de casos extraconjugais com fãs menores de idade.

Outros

Todos estes relatos têm feito com que muitas outras empresas acabem com os contratos e patrocínios que têm com os acusados e, no Twitter, onde mais se fala sobre o assunto, as vítimas continuam a falar sobre as experiências. Entre as polémicas de maior destaque chega-nos a da comunidade de streaming de Destiny 2. Três jogadoras acusaram o streamer Lono (também conhecido como SayNoToRage) de várias transgressões, como assédio verbal, físico e propostas sexuais. Lono respondeu às acusações fazendo um vídeo no Youtube onde assume que: “Não há desculpas para o meu comportamento. As coisas que fiz foram inaceitáveis. Agir de forma inapropriada com estas pessoas privou-as do seu sentimento de segurança e quebrou a confiança que tinham, e estou verdadeiramente arrependido”. 

Jessica Richey, uma streamer e criadora de conteúdo de 28 anos começou, entretanto, a juntar as alegações numa thread no Twitter e revelou numa entrevista que, após a criação da thread, recebeu cerca de 50 mensagens diretas de pessoas a pedir que as suas histórias fossem adicionadas ao tópico.

Molly Fender Ayala, líder da Twitch e responsável pela comunidade do jogo Overwatch, publicou uma mensagem no Twitter a acusar Omeed Dariani, o CEO do Online Performers Group, uma agência de gerenciamento de talentos que trabalha com vários streamers, de agir de forma inapropriada com ela, alegando que Dariani lhe fez propostas sexuais em 2014. Dariani usou a mesma rede social para responder às acusações de Ayala dizendo que “não se lembra especificamente da conversa mencionada.” Acrescenta que, ainda assim, não vai ficar a discutir se algo “realmente aconteceu ou não”, porque prometeu que ia “acreditar nas mulheres”, mesmo que fosse ele a pessoa visada. Nesse mesmo dia demitiu-se do lugar de CEO. Brooke Thorne, streamer e jogadora no Reino Unido, por exemplo, anunciou o afastamento da empresa de Dariani, que geria a sua carreira.

O problema alastra-se à indústria do entretenimento geral e não se fica no mundo digital. Na indústria dos jogos de mesa, as polémicas também têm surgido em threads esporádicas do Twitter que contam histórias de pessoas marginalizadas que destacam experiências de assédio, abuso e racismo. É o caso de Max Temkin, co-criador do famoso jogo Cards Against Humanity e então líder de um espaço de coworking em Chicago, que foi acusado por ex-trabalhadores do emblemático jogo de cartas de falta de condições e de um ambiente tóxico de trabalho. Relatos concretos falam de uma cultura de trabalho sexista e racista. A Cards Against Humanity prometeu melhorar e os seus trabalhadores já avançaram para a criação de um sindicato.

Esta história surge sobre uma outra alegação de agressão sexual feita contra Temkin, em 2014. O site Polygon entrevistou a vítima e cinco dos seus colegas que se lembram do ataque, corroborando a acusação. Temkin negou o sucedido, mas as sucessivas situações acabaram por abalar a empresa de Chicago, e Temkin acabou por separar-se efetivamente da marca e do espaço de coworking a 9 de Junho.

A verdade é que este tipo de situações ocorrem em vários ramos do setor dos videojogos e são vários os casos que teria de se relatar para o cenário ficar completo,. Estes são apenas os que se destacam  e que acabam por simbolizar uma mudança, aparentemente, de fundo no mundo do gaming. 

Estas histórias mostram uma tendência vigente há muito tempo e que não será resolvida retirando algumas pessoas prejudiciais a cada par de meses. A tarefa passa por reformar a cultura dos videojogos em grande escala, e quem trabalha com jogos sabe que é algo que já devia ter sido feito, à medida que mais homens (sendo o género onde mais ocorrem casos) perigosos são banidos, é impossível ignorar quantos já ocuparam posições de poder e cometeram os mesmos crimes sem qualquer tipo de repercussões. As empresas também têm um papel importante nesta situação, e se querem resolver os problemas de assédio, má conduta sexual e agressão, precisam de entender e resolver de forma mais assertiva as políticas internas, facilitando o apoio dado às vítimas, criando canais de denúncia e garantindo um ambiente saudável na sua estrutura e em cada uma das suas equipas, tentando perceber desde logo o que conduz a este tipo de fenómenos.

Isso requer uma reflexão sobre práticas e estruturas internas, tanto dos estúdios expostos a alegações como os que não estão expostos; uma obrigação ética que agora ganha carácter de urgência. É certo que tanto mulheres como homens podem estar no lugar do abusador e do abusado, no entanto a indústria dos jogos sempre demonstrou um padrão de dano predominantemente masculino e é preciso normalizar a responsabilidade dos homens em consciencializar os seus colegas, tanto no trabalho como fora dele.

As alegações não são o mote para haver apenas uma reação inicial e um misto de sentimentos sem qualquer tipo de ação, são o começo de uma conversa difícil e longa sobre abuso e sobre as intenções de quem participa e de quem é cúmplice, e a indústria dos jogos não pode simplesmente assumir que não sabia ou que lamenta, é necessário agir e tratar do problema pela raiz, porque o abuso é um problema de todos.

Índice

  • Bernardo Pereira

    Licenciado em Comunicação Social na Universidade Católica Portuguesa e a tirar Mestrado em Internet e Novos Media, o Bernardo Pereira é atento ao mundo da informação. As suas paixões por escrever artigos e pelo mundo das Artes unem-se para nos dar regularmente opiniões e novidades fresquinhas sobre tudo o que se insere na nossa cultura. O seu interesse maior vai para a música, filmes e séries.

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