Estafetas: entre o algoritmo e o vírus

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Ilustração de Bruno Caracol/Mapa

Estafetas: entre o algoritmo e o vírus

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Tidos enquanto "trabalhadores essenciais", um dos que "estão na linha da frente" "por todos", tal reconhecimento não se traduziu numa melhoria das condições de vida e trabalho dos estafetas da Uber Eats e Glovo.

No dia 7 de fevereiro de 2020 ocorreu, no Terreiro do Paço, aquela que terá sido a primeira manifestação de estafetas a reclamar o espaço público. Cerca de 50 trabalhadores da Glovo reclamaram por salários em atraso e dificuldades de comunicação com a empresa. Outras formas de luta já tinham ocorrido neste sector, como algumas greves espontâneas ou diversas formas de organização e resistência quotidiana. Contudo, este protesto foi o mais visível até ao momento, e deverá ser tomado como um marco nas reivindicações deste sector em Portugal – onde, ao contrário de outros países europeus, se observam menos greves e protestos a larga escala.

Neste texto, pretendemos salientar a existência de diversas formas de luta e contestação às plataformas Glovo e Uber Eats por parte dos seus trabalhadores, bem como oferecer um contexto da sua situação durante a crise associada ao Covid-19. Tal contribuirá para criticar a visão que toma tais trabalhadores como atomizados e alienados dos seus interesses, supostamente incapazes de mobilização e organização colectiva, bem como para contextualizar a sua situação.

Situação

A Uber Eats e a Glovo chegaram a Lisboa em 2017, e em três anos disseminaram-se na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e em várias cidades do país. O trabalho de estafeta já existia anteriormente, e outras empresas de entregas continuam no mercado – algumas, inclusive, oferecendo o mesmo tipo de serviço e também funcionando digitalmente (como é o caso da Takeway). No entanto, o que distingue estas duas empresas é a forma como o trabalho surge quase totalmente mediado por uma plataforma, e pelas determinações algorítmicas que a estruturam.

A tradicional relação hierárquica entre patrão e trabalhador mantém-se (ou não continuasse a existir lucros), mas muda consideravelmente nesta situação. A maioria das ordens, ou “indicações”, que os estafetas recebem são dadas por um algoritmo que, no essencial, funciona de forma autónoma – ainda que com princípios e formas de estruturação bastante explícitas de eficiência e maximização do lucro.

A relação entre o trabalhador e estas empresas surge de uma forma impessoal e tendo como base uma suposta neutralidade, mediada tecnologicamente. Ao mesmo tempo, emerge dentro da retórica de uma sharing economy, que colocaria em contacto, e num plano de igualdade, prestador e consumidor de um serviço. Contudo, o que se dá são processos de deskilling potenciados por uma plataforma que indica a “rota correcta”, uma gestão e avaliação algorítmica, e um sistema de renumeração à peça que se traduz numa intensificação do trabalho. Ganhando unicamente por pedido, com renumerações variáveis (do valor de cada entrega aos quilómetros percorridos), o trabalhador é incentivado a aumentar a sua produtividade para conseguir receber um mínimo de subsistência. Sem salário fixo (nem sequer à hora), introduz-se uma pressão para fazer o maior número de pedidos no mais curto espaço de tempo – até por se saber que a possibilidade de ter pedidos depende de vários fatores, na maioria não dependentes do trabalhador.

Trabalhei alguns meses na Glovo, chegando a ter algumas horas sem qualquer pedido e, como tal, sem qualquer renumeração. Algo que acontecia apesar de a empresa funcionar numa lógica de marcação de horas, estando o estafeta obrigado a fazer check-in na aplicação para garantir que se encontra disponível em cada turno iniciado. Como os trabalhadores são pagos à peça, é vantajoso para a empresa ter mais trabalhadores disponíveis.

Não pagam mais por tal e garantem sempre alguém para os pedidos a receber, introduzindo-se uma “competição” entre trabalhadores por horas e pedidos, bem como uma pressão para descer a renumeração média de cada pedido. A isto junta-se uma situação comum a diversos precários, marcada pela ausência de um contrato de trabalho efetivo, sem os direitos e subsídios associados a tal estatuto. Por exemplo, e falando do caso da Glovo, é sintomático que exista um seguro para a entrega (garantindo a empresa e o cliente), mas nenhum seguro para o trabalhador. Acresce a responsabilidade do próprio de garantir seguro, smartphone ou modo de transporte – seja através de meio próprio ou do aluguer dos vários esquemas de sharing existentes, de motos ou bicicletas. No fundo, uma externalização de custos que são essenciais à atividade.

Em Lisboa, a maioria dos trabalhadores é imigrante – com destaque para imigrantes de origem brasileira e uma imigração asiática cada vez mais visível. Algo que se tende a repetir noutras cidades europeias. Em alguns casos, trata-se de trabalhadores que, em situação ilegal, têm nestas empresas a única opção possível de emprego – algo que se torna possível pela existência de esquemas de subaluguer de contas, em que os supostos donos das mesmas ficam com parte dos rendimentos. São vários os fatores a estruturar as configurações de precariedade destes estafetas, revelando-se em diferentes graus num trabalho que é, ele mesmo, precário.

Resistência

Apesar de as formas de reivindicação neste sector não serem as mais visíveis e, porventura, suficientes, atendendo à sua situação, a verdade é que existem várias dinâmicas em curso. Destacam-se duas grandes formas de organização neste meio, ambas enquadradas numa organização invisível/escondida e quotidiana. Por um lado, os diversos grupos de social media (em geral, WhatsApp) que estes trabalhadores criam e usam regularmente. Por outro, e tomando a cidade como o seu espaço de trabalho, os diversos momentos de encontro e de partilha no espaço público.

Os primeiros, funcionando autonomamente, são usados para os mais diversos fins: indicações de áreas com bastantes pedidos, pedidos de ajuda para o preenchimento de declarações fiscais ou pedidos de residência, debates sobre a melhor opção de transporte (moto ou bicicleta), diversas discussões sobre problemas com a plataforma, etc. Na minha experiência, apercebi-me da recorrência de posts com queixas à plataforma – problemas com o chat de apoio ao estafeta ou dúvidas sobre a sua avaliação ou renumeração.

Recorrentemente se discutia a suposta neutralidade do algoritmo (se este privilegiava ou punia alguém) ou a ineficiência do chat de apoio. Se nem sempre haveria uma oposição declarada à empresa, é certo afirmar que é generalizada a desconfiança em relação à mesma. Esta desconfiança levava a que vários estafetas, de forma sistemática, tirassem printscreens à sua aplicação, monitorizando os passos na plataforma, como forma de defesa. Assisti a várias partilhas em que alguém dizia que tinha enviado tal printscreen à empresa como prova, e só assim tinha conseguido defender-se.

Também é através destes grupos que os estafetas se organizam para as suas reivindicações. Já quando estava a sair da Glovo, assisti à organização e difusão online de um apelo que pretendia reunir centenas de estafetas (em resposta a vários problemas com a aplicação e às quebras de renumeração). No caso da Uber Eats, também é através destes meios que os estafetas acertam momentos para greves temporalmente circunscritas – o sair da aplicação durante algum tempo para fazer subir o valor médio dos pedidos, ou outras reivindicações. Por exemplo, a 7 de maio de 2019, assisti a uma greve da Uber Eats motivada pela redução dos valores de renumeração. Esta greve, à hora de jantar, levou ao cancelamento de vários pedidos. Dessa greve, pude assistir a uma imagem de um McDonald’s com vários pedidos prontos, mas sem que os mesmos tivessem sido recolhidos. Não tendo uma relação contratual nem sendo obrigados a apresentar um pré-aviso de greve, introduz-se um forte potencial de bloqueio nestas greves. Assentes em sistemas de produção e distribuição just-in-time, tais greves têm o potencial de rapidamente lançar o caos na plataforma.

Noutro ponto, é de destacar os vários espaços de encontro entre estafetas – dentro dos restaurantes ou em espaços de espera (em Lisboa, destacando-se a zona do Saldanha ou espaços junto ao McDonalds). Durante esses momentos, os estafetas conversam e discutem o seu trabalho e experiências. Os cruzamentos na rua também são formas de criação de comunidade – no caso dos ciclistas da Glovo, grupo onde me incluía, havia um sinal de reconhecimento que praticamente todos faziam ao cruzarem-se.

Apesar do carácter relativamente isolado deste trabalho, verificam-se vários momentos e situações de encontro e de partilha entre estafetas, bem como outras expressões de protesto. Assisti a várias situações – na rua, ou online – em que trabalhadores da Glovo retiraram horas que tinham marcado para si – as quais já não precisavam ou quereriam fazer –, tornando-as disponíveis para outros trabalhadores com quem tinham previamente combinado.

Lembro-me de ter assistido a vários atrasos deliberados após receber a notificação de um novo pedido – muitas vezes, “apenas” por se querer acabar uma conversa. Várias situações de descuido deliberado em relação aos pedidos, seguidas de frases como “Se o cliente quiser melhor, que venha cá buscar”. Ou, e aproveitando o facto de não haver um supervisor direto, é comum enviar informações falsas ao chat de suporte para seu proveito – fotos de bicicletas estragadas (não suas), referindo que não se pode trabalhar, ou mentir, dizendo que se está doente. E, mesmo não entrando em pormenores, poderei dizer que tanto na Uber Eats como na Glovo alguns estafetas desenvolveram tácticas para ficar com alguns pedidos para si e/ou fazer negócios com clientes ou restaurantes, sabotando a plataforma e o algoritmo.

Trabalho virulento

A crise pandémica intensificou os regimes de precariedade. No caso dos estafetas, deixou-os numa posição relativamente dúbia. Atendendo a que não teriam outras possibilidades de rendimento ou apoio social (até pela precariedade da sua situação), muitos continuaram a trabalhar – no fundo, sujeitos à chantagem entre morrer do vírus ou morrer de fome. Tidos enquanto “trabalhadores essenciais”, um dos que “estão na linha da frente” “por todos”, tal reconhecimento não se traduziu numa melhoria das suas condições de vida e trabalho. A própria declaração do estado de emergência incentivou a continuação da atividade. Mesmo decretando o fecho de restaurantes ao público, exortava que os mesmos se mantivessem abertos para serviços de take-way ou entrega ao domicílio. No artigo 11.º do decreto do estado de emergência, refere-se que as atividades prestadas “através de plataforma eletrónica” não seriam suspensas.

Em entrevista, uma responsável da Uber referia que a plataforma está “(…) a operar na normalidade”, e que, “[n]este momento, estamos focados em garantir que conseguimos cooperar e ajudar o sector da restauração”uma afirmação que revela a prioridade da empresa. Já a Glovo fazia referência a “um aumento na ordem dos 112% dos produtos da categoria Farmácia no período compreendido entre Janeiro e a primeira semana de Março”. Neste período, vários restaurantes estabeleceram parcerias com estas plataformas. O discurso das plataformas tende ainda a focar-se num outro ponto – a segurança e a comodidade dos clientes. Existe a preocupação de garantir que são cumpridos, a começar pelos estafetas, os protocolos de segurança sanitária. Contudo, e pelo menos no caso da Glovo, as despesas para material de desinfeção e proteção ficam a cargo do trabalhador.

Apesar da suposta normalidade na operação destas plataformas – inclusive, com possibilidades de futuros reforços de posição no sector –, é de supor que os estafetas não vejam grandes alterações nos seus ganhos. Estando a renumeração dependente dos pedidos realizados, é de duvidar que o número médio de pedidos terá subido de forma considerável. Face à quebra generalizada de rendimentos, deverão ser menos aqueles que utilizam estas aplicações. Como refere um estafeta ao site AbrilAbril: “O valor e a frequência das gorjetas aumentou muito, porque houve uma mudança de estatuto e a maior parte das encomendas são feitas por clientes com uma condição social um pouco mais alta”, concluindo que: “(…) se a tua condição económica te permitir e se consideras que é o melhor para ti, esta é uma solução para te manteres isolado. Se não tens capacidade, tens que ir para as filas dos supermercados, como as outras pessoas”.

Estando os pedidos mais restringidos a classes altas, o número global de pedidos tenderá a descer. A juntar à menor renumeração e à maior exposição, em contexto de pandemia os estafetas confrontam-se com outros dois grandes problemas – a maior dificuldade de encontrar uma casa de banho pública e a maior dificuldade de encontrar um espaço para comer algo quente e rápido, aspectos essenciais para quem passa a maior parte do tempo na rua.

Mesmo que poucas e provavelmente não integradas numa estratégia para o sector, são várias as formas de luta e de organização entre estes trabalhadores, destacando-se aquelas associadas ao quotidiano – uma dimensão fulcral para qualquer processo político. Sendo importante não esquecer que, mesmo num estado de emergência que suspendeu o direito à greve, estes não precisam de um pré-aviso para a fazer – bastas-lhes desligar a plataforma. Algo que, face à crise social e económica que se intensifica, e na ausência de outras respostas sociais, poderá revelar-se fundamental para evitar uma possível uberização e digitalização do trabalho. O que, inclusive, poderá implicar a valorização de atividades de reprodução social e de apoio mútuo, tais como é atualmente observado em entregas ao domicílio a pessoas vulneráveis, organizadas autonomamente e em contraposição às entregas mediadas por plataformas. Esse poderia ser um passo para visibilizar tarefas que permanecem invisibilizadas, mesmo que agora surjam sob o nome de “essenciais”.

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