Apple encostada à parede por causa da “taxa de 30%” que impõe aos programadores

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Apple encostada à parede por causa da “taxa de 30%” que impõe aos programadores

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A Apple abre e fecha a porta da App Store como quer e bem lhe apetece. Existem regras que não são iguais para todos e isso está a incomodar alguns programadores. Do Basecamp ao Spotify. Do Tinder ao Facebook.

É já na segunda-feira que programadores de vários cantos do mundo que desenvolvem software para o ecossistema da Apple vão reunir-se, uma vez mais, no habitual WWDC. Contudo, a edição deste ano arranca em ambiente de polémica entre a marca e a sua comunidade de programadores. No princípio dessa polémica, está, desta vez, uma app chamada Hey.

O que aconteceu?

A Hey é um novo e inovador serviço de e-mail desenvolvido pelo Basecamp, uma das mais bem cotadas apps de produtividade para equipas que trabalham remotamente, com um custo 99 dólares/ano. A Hey pretende estar disponível numa série de plataformas, entre elas, o iOS, contudo, para usar a aplicação é necessária uma subscrição que deveria ser feita através do sistema da Hey – e é aqui que ‘a porca torce o rabo’.

Screenshot do site do Hey

A Apple não está a autorizar a app da Hey na App Store porque os seus criadores não integraram o sistema de subscrição da Apple através do mecanismo de compras dentro da app (In-App Purchase, ou seja, IAP). É que através do IAP, a Apple fica com 30% por cada transacção e com 15% da subscrição no final do ano. Ora, o Basecamp, responsável pela Hey, não quer isso. “Estou literalmente surpreendido”, comentou David Heinemeier, fundador do Basecamp, no Twitter, considerando uma “exigência ultrajante” a da Apple para ficar com 15-30% das receitas do Basecamp.

De acordo com David Heinemeier, a Apple informou que caso a Hey não introduza o sistema de IAP a aplicação será removida da App Store – a Hey permanece disponível na loja mas o Basecamp não consegue oferecer actualizações aos utilizadores.

A resposta da Apple

“Quando descarregas uma aplicação e ela não funciona, não é isso que queremos na loja”, explicou Phil Schiller, responsável de marketing da Apple, numa entrevista ao TechCrunch. A Apple quer que as pessoas consigam subscrever as aplicações directamente no iPhone ou iPad; a empresa não impede que os programadores integrem outros modelos de subscrição ou de compra desde que a opção de compras integradas (o tal IAP) através do mecanismo nativo da Apple esteja lá.

Existe, no entanto, uma grande excepção: as apps de ‘leitura’, isto é, as aplicações que, segundo a Apple, servem para aceder a conteúdos como música, filmes, séries ou livros. Serviços como o Netflix são consideradas apps de ‘leitura’ e por isso podem estar na App Store apesar de pedirem aos utilizadores uma conta ou subscrição prévia antes de estes as puderem usar. “O e-mail não é e nunca foi uma excepção incluída nessa regra”, referiu Phil Schiller, acrescentando que à data a Apple não tem qualquer plano para alterar as regras da App Store.

#YouDownloadTheAppAndItDoesntWork

Schiller sublinhou que foi um erro da Apple ter aceite a primeira versão da Hey na App Store e que no caso da Mac App Store não se enganou e rejeitou de imediato a aplicação por não cumprir as regras. Regras essas que o responsável do Basecamp continua a questionar.

Heinemeier inaugurou no Twitter a hashtag#YouDownloadTheAppAndItDoesntWork para mostrar uma série de aplicações que os utilizadores podem descarregar da App Store e que não funcionam sem uma conta criada previamente, incluindo o Netflix e o Gmail, a app bancária da J.P. Morgan, o serviço de e-mail da Salesforce ou até mesmo a própria aplicação para programadores enviarem apps para a App Store, a App Store Connect.

Já a Forbes assinala que a própria aplicação do Basecamp para iOS, que pode ser descarregada há vários anos na App Store, não inclui o sistema de pagamentos da Apple nem uma forma de criar uma conta, pedindo que esses processos sejam feitos previamente. Ao site Protocol, fonte da Apple esclareceu que só autoriza aplicações que deixam os utilizadores entrar na sua conta (sign in) mas não criar uma (sign up) no contexto empresarial; é por isso que o Basecamp pode estar na App Store mas o Hey não – a Apple considera que o Hey é uma aplicação de consumo.

Até há bem pouco tempo a Amazon reencaminhava os utilizadores da sua plataforma de streaming no iOS, o Prime Video, para uma janela de browser no momento de alugarem um conteúdo, para que a Amazon não tivesse de pagar taxas de 30% por transacção da Apple. Contudo, em resultado de um acordo entre a Amazon e a Apple, a primeira passou a poder disponibilizar compras integradas (IAP) na aplicação iOS através do seu mecanismo de pagamentos e não do da Apple – ou seja, a Amazon não tem de dividir 30% com a Apple mas pode ter IAP na mesma. Segundo a Bloomberg, este acordo especial entre a Apple e a Amazon é igual a outros que a empresa da maçã tem com plataformas semelhantes ao Prime Video, como é o caso da Altice One e do Canal+.

Neste cenário em que existe regras para uns e regras para outros, as reivindicações do Basecamp parecem fazer ainda mais sentido. No fundo, não se trata apenas de questionar as práticas de negócio da Apple, nem o seu monopólio, mas também a desigualdade no acesso a um mercado que ela próprio criou e que ela própria regula.

O caso do Facebook Gaming

O Facebook tem tido um problema parecido com a Apple. Segundo conta o New York Times (NYT), a empresa de Mark Zuckerberg – que já chegou a ter parcerias especiais com a Apple– tem tido dificuldade em ver aprovada a sua nova aplicação, o Facebook Gaming, que está há algum tempo disponível no Android.

Desde Fevereiro, a Apple rejeitou cinco versões diferentes do Facebook Gaming, segundo revelaram ao NYT fontes anónimas próximas ao Facebook e à Apple; em cima da mesa, estarão regras da Apple que proíbem aplicações com o “propósito principal” de distribuir jogos casuais. A equipa do Facebook ficou a saber este mês, após uma última avaliação que durou algumas semanas, que a aplicação foi oficialmente rejeitada.

Facebook Gaming

Duas pessoas, citadas pelo NYT, dizem que o Facebook Gaming pode prejudicar as receitas da Apple na venda de jogos, a categoria de apps mais lucrativa a nível mundial. A única forma de os utilizadores de iPhone e iPad descobrirem e descarregarem jogos é através da App Store, onde só estão títulos aprovados pela Apple e que gerou cerca de 15 mil milhões de dólares em receitas só no ano passado.

O caso do Facebook Gaming pode parecer diferente do da Hey mas tem na base a mesma questão: o poder da Apple para fechar e abrir a porta da App Store, baseando-se em regras por vezes dúbias.

O Android e a Comissão Europeia

No Android, a Google permite aos programadores usarem o sistema de pagamentos que entenderem dentro das suas apps e Heinemeier Hansson disse à Forbes que a subscrição do Hey no Android vai directamente para o Basecamp. A Google também permite aos utilizadores do Android que utilizem outras lojas além da Play Store, enquanto que no iOS não é possível instalar aplicações fora da App Store.

Preocupada com alegadas violações da concorrência na União Europeia (UE) relativamente às regras da sua loja online de aplicações, a Comissão Europeia (CE) anunciou uma investigação à Apple. A CE quer perceber “se as regras da Apple para os criadores na distribuição de aplicações, através da App Store, violam as regras de concorrência da UE”, procurando clarificar a “utilização obrigatória do próprio sistema de compra de aplicações da Apple e a existência de restrições à possibilidade de os criadores informarem os utilizadores de iPhone e iPad sobre alternativas mais baratas”. [Esta é uma de duas investigações que a CE iniciou com a Apple como alvo; a segunda tem a ver com o serviço de pagamentos Apple Pay e vai inquirir se a Apple está a recusar o acesso a outros operadores de pagamentos móveis ao seu ecossistema iOS.]

Na política norte-americana, há também quem se mostre preocupado com a questão anti-concorrencial. “Por causa do poder de mercado que a Apple tem, está a cobrar taxas exorbitantes – um roubo à vista de todos, basicamente –, intimidando as pessoas a pagar 30% ou negam o acesso ao seu mercado”, comentou David Cicilline, deputado democrata norte-americano e presidente do sub-comité para a anti-concorrência, ao The Verge. “Estão a esmagar pequenos programadores que simplesmente não conseguem sobreviver com esses tipos de pagamentos. Se existisse verdadeira competição neste mercado, isso não aconteceria.”

“Muitas pessoas (…) temem não conseguir sobreviver à retaliação económica que essas grandes plataformas podem impor por causa do poder que possuem, e nós pretendemos levar essas alegações muito a sério”, comentou Cicilline, que através do seu comité convidou os directores executivos da Amazon, Apple, Google e Facebook para testemunhar na sequência de uma investigação sobre o poder dos mercados digitais – todos menos Tim Cook, da Apple, aceitaram.

Microsoft e Spotify

Brad Smith, presidente da Microsoft – tecnológica que há cerca de 20 anos enfrentou alegações sobre práticas anti-concorrenciais, num caso que resolveu através de uma parceria com a Apple –, pediu aos reguladores nos Estados Unidos e na Europa para avaliarem as práticas da Apple, referindo que algumas lojas criaram uma barreira muito mais alta à concorrência que aquela que o Windows criou há duas décadas. “Eles criam requisitos para que cada vez mais exista apenas uma maneira de aceder à sua plataforma e de passar pelo portão que eles próprios criaram.”

A Microsoft está preocupado porque também ela é afectada pelas regras da App Store. Como outros programadores, a empresa tem de partilhar 15 a 30% com a Apple por casa subscrição do Microsoft Office ou do Outlook; a Microsoft não pode dizer para os utilizadores fazerem a subscrição no seu site. Também o Spotify criticou o monopólio da Apple – foi, aliás, o primeiro a fazê-lo, em Março de 2019, o que despontou a acção da Comissão Europeia acima referida.

Daniel Ek, director executivo do Spotify, questionou o facto de a Apple ficar com 30% de cada subscrição do Spotify feita através do iOS e com 15% por cada ano de duração dessa subscrição. Ek referiu, na altura, que essas taxas obrigavam o Spotify a oferecer preços acima dos praticados pela Apple com o seu concorrente Apple Music. O dono do Spotify questionou também o porquê de as regras para aplicações de entregas como a Uber ou a Deliveroo serem diferentes – ou seja, não terem a baptizada ‘taxa Apple’.

Em resposta, a empresa da maçã disse na altura que “o Spotify quer ter todos os benefícios [de estar na App Store] e ao mesmo tempo reter 100% das receitas”. Em reacção à decisão da Comissão Europeia de avançar com uma investigação, a empresa disse ser “decepcionante que a Comissão Europeia esteja a apresentar queixas infundadas de um punhado de empresas que simplesmente querem uma viagem grátis e não querem seguir as mesmas regras que todos os outros”.

Na mesma entrevista ao TechCrunch, Phil Schiller, da Apple, explicou que quem desenvolve a Hey tem à disposição “muitas coisas” que pode fazer “para tornar a sua app compatível com as regras que temos”, e que “adoraríamos que fizessem isso”. Uma dessas formas é permitir uma opção gratuita da aplicação com algumas funcionalidades gratuitas, explicou o executivo, com uma opção para comprar a versão paga através do iOS e da sua plataforma; para Schiller, o importante é que as aplicações funcionem uma vez descarregadas pelos utilizadores da App Store.

Se é verdade que a Apple procura que a App Store seja uma experiência positiva e segura para todos os utilizadores, com regras mais apertadas que, por exemplo, a Google com a Play Store, é de salientar que isso resulta num ecossistema fechado e com regras diferentes para diferentes programadores.

A Epic Games, criadora do jogo Fortnite, e a Match Group, proprietária do Tinder, já se juntaram ao Spotify, Microsoft e Basecamp contra as práticas anti-concorrenciais que dizem existir por parte da Apple.

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