Raphaël Bastide: “A net art, como a street art, está acessível a um grande público mas nem toda a gente é capaz de a reconhecer”

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Raphaël Bastide: “A net art, como a street art, está acessível a um grande público mas nem toda a gente é capaz de a reconhecer”

O artista francês desenvolveu durante a quarentena o projecto Evasive.Tech, uma maratona narrativa para visitar no teu browser.

Qualquer que seja a nossa posição pessoal sobre tecnologia no geral e a internet em particular, é do senso comum afirmarmos que ambas são cada vez mais o centro das nossas vidas. Com a pandemia, essa realidade tornou-se ainda mais evidente, com grande parte das nossas interações a passarem para o digital e reacendeu-se o interesse e a discussão sobre o que compõe e caracteriza este maravilhoso mundo novo.

O hype do Zoom e as Contact Tracing Apps puseram-nos a pensar em privacidade, as dificuldades dos menos expeditos ou os obstáculos a pessoas com deficiência na questão da acessibilidade e a dependência das redes sociais no sistema comunicacional como um todo. De repente a internet era quase tudo o que nos restava, para continuarmos a trabalhar, para fazermos compras, ou para nos exprimirmos em público, agora que os convívios estavam proibidos ou desaconselhados. No meio desta parafernália de utilizações possíveis, emerge a questão sobre o que é afinal a internet, como a devemos perceber. O domínio das empresas sobre o espaço da web dá-nos a sensação de um mundo digital corporativizado, com parcelas bem definidas onde empresas praticam os seus serviços mas a verdade é bem mais abrangente e há quem o continue a demonstrar.

Raphaël Bastide é um artista francês que faz da internet o seu meio artístico de eleição; fazendo parte de um movimento de fundo, que se regenera desde os anos 50 e reclama as linguagens de programação e o espaço digital como um campo de possibilidades por descobrir e reinventar, onde o potencial emancipatório do humano pode conhecer novos capítulos. Durante a quarentena, Bastide desenvolveu um projecto diário de programação e publicação de uma série de peças de net art, chamado Evasive.Tech. No total são 35 páginas web, programas de modo criativo e que juntas nos contam uma história, convidando a uma mudança de percepção sobre as possibilidades da internet, mesmo sem que esse seja o tema a que se subordina o trabalho. 

Falámos com o artista e professor francês sobre este projecto, os seus objectivos e as auto-imposições que o caracterizam, especulando sobre a importância renovada de que a net art pode gozar neste período, numa conversa que deixa pistas para uma exploração ainda mais profunda desta nova poesia.

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O progresso tecnológico é muito associado aos níveis de eficiência, enquanto a programação criativa explora um lado menos utilitário destas ferramentas. É como uma espécie de poesia numa nova linguagem?

Quando os computadores começaram a aparecer nas universidades e depois na casa das pessoas, algures nos anos 80, os artistas começaram a experimentação a programação como um meio, tal como as artes mais tradicionais fazem com a pintura, o barro, o desenho, a linguagem. A arte e os computadores têm uma muito longa e fascinante história. Por exemplo, no final dos anos 1950, Vera Molnar foi uma das pioneiras no uso de computador para criar trabalhos gráficos, usando o Fortran, uma linguagem de programação dos primórdios. Para mim, a sua influência na cultura visual contemporânea é tão importante como a do Cezanne na pintura. Como a poesia, o uso criativo dos computadores foge à questão sobre a eficiência funcional, e tal como a poesia, o resultado das criações lida de perto com as características do meio e tenta encontrar os seus limites. A minha abordagem não é só para criar poesia mas para questionar as tecnologias web, o meio que escolhi para o projecto Evasive.Tech. Estou particularmente interessado em questões como a presença ou ausência de interação com o browser, a economia da atenção da audiência online, e em como criar novos artefactos culturais. Artistas como a Vera Molnar, e muitos outros depois dela, inspiram-me a fazer as minhas escolas, tal como a cultura popular, a imagética científica e as ferramentas que uso.

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O termo que dá nome ao projecto – evasivo – vai contra a tendência continuamente invasiva do mundo digital. Esta relação antagonista é um apelo por uma internet diferente?

Eu escolhi o nome Evasive.Tech no dia 1 da quarentena. Nessa altura, tinha uma ideia bastante frágil do que o projecto viria a ser. Lembro-me de querer pegar num nome que soasse estranho com a palavra “tecnologia”. Então usei a palavra “evasivo” como um pretexto para uma narração que não é clara, é ambígua, evita o seu final a cada episódio. Achei interessante criar uma fábula adaptada às minhas restrições: escrever e programar cada dia, sem saber o que viria no dia a seguir. Neste caso, a conclusão e a moral não existem até ao último dia do projecto. Agora olho para trás, e ao ver toda a fábula, percebo que o protagonista e a localização da história permanecem incertos, o que provavelmente serviu para me permitir estender a narrativa em várias direções cada dia, como se servisse de rede de segurança. Para responder mais directamente, a escolha deste nome não está directamente relacionada com uma internet diferente mas eu sou altamente crítico do que a internet e, muito particularmente a web, se tornou. Estamos longe da utopia dos anos 1990 e a internet art amadureceu bem com esta ideia: os artistas estão a criar num espaço dominado por um par de empresas extremamente poderosas e não numa zona livre, respeitante dos nossos dados, da nossa cultura, e aberta como a que sonhámos há 20 anos atrás. Acho que o lado negro do projecto é influenciado por essa desilusão.

Em tempos como este de distanciamento físico, em que o computador serve quase como um portal para o mundo, projectos como este, que questionam a nossa relação com a tecnologia, ganham ainda mais importância?

Durante o período de quarentena algumas instituições da cena artistica encheram os social media com reproduções de trabalhos físicos, tours virtuais em exposições físicas ou retratos de artistas. Algumas instituições têm o desejo de expor conteúdo exclusivamente feito para ser experienciado online. Upstream.Gallery ou We=Link são bons exemplos de exposições online que ocorreram durante a quarentena, com curadoria que tem e consideração a história da internet art.

O Evasive.Tech é parte desses projectos, feito para a web e para mais lado nenhum. Eu decidi começar o projecto não para tirar partido de nenhuma potencial nova audiência, mas porque tinha à minha frente uma boa oportunidade para me focar num trabalho baseado no tempo. Fico contente se as pessoas descobrirem a arte de durante a quarentena mas espero que este interesse não morram com o fim da pandemia. Há trabalhos fascinantes online há mais de 30 anos, é uma questão de atenção e cultura para os apreciar e mudar a nossa relação com a tecnologia. Por exemplo, se uma pessoa visita um trabalho artístico online e tira algum tempo para perceber o seu tema e o seu contexto, esse visitante já tem uma abordagem crítica à tecnologia, porque ele ou ela reconsidera a internet como um meio artístico e não como uma simples forma de comprar bilhetes de comboio ou falar com amigos.

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Esta é a tua 2ª maratona, há alguma explicação para este longo formato? Sentes que as restrições que te auto-impões acabam por modelar o resultado final?

Sim, de certeza que o formato afecta o resultado. Evasive.tech é simultaneamente um desafio estilístico e técnico e a restrição de tempo permitiu-me cristalizar um gesto espontâneo que reflecte o tempo estranho em que estamos a viver actualmente. Acho que muitas pessoas criativas têm de produzir durante a quarentena. É tranquilizador e permite-nos experimentar criar sob restrições. Para além disso também estou interessado em programar num curto período de tempo, tem, de alguma forma, o efeito da escrita automática. A programação é normalmente identificada como um processo cientifico que dá vida a caixas pretas com matemática complexa dentro delas. Mas na realidade, os programas que usamos diariamente são mais instáveis do que parecem porque foram escritos e actualizados por seres humanos e sofrem de todos os defeitos, como qualquer outro trabalho. As páginas que faço têm esta assinatura humana, o código, os gráficos, e os conceitos têm imperfeições que eu tento percebo, controlar e integrar. Eu vejo este trabalho como uma série de desenhos num caderno, um exercício de estilo que me leva novos desafios a cada dia, que tento superar com mais ou menos dificuldade.

A net art tem um potencial infinito de chegar as pessoas – achas que já há uma audiência que a valorize ou a tecnologia continua a ser vista como algo mais utilitário e menos criativo?

Eu habitualmente comparo a net art com a street art para explicar peças web-based aos meus estudantes. Ambas existem no espaço público e partilham uma relação complexa com o público, o mercado da arte e os colecionadores. Para além disso, tanto a net como a street art poderiam estar acessíveis a um grande público em teoria, mas na prática nem toda a gente é capaz de reconhecer e apreciar uma peça de arte na rua ou online. A diferença é uma questão de cultura, e para a net art, a maioria das pessoas mais letradas têm este privilégio. Quando consideras que para a maioria das pessoas a utilização da internet é limitada às aplicações de social media, podes imaginar que um projecto artístico visível no computador só vai alcançar uma pequena audiência. Eu acho que é importante manter isso em mente, mas contudo não será isso que me impedirá de continuar a fazer trabalho com este meio fantástico. A história dos meios da arte é feita de experiências singulares e inusitadas, com meios mais ou menos populares, e eu acredito que a dimensão da audiência é menos importante do que o quanto o trabalho ressoa dos nossos tempos.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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