Isolamento social gera aumento de casos de violência doméstica em todo o mundo

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Foto de Nik Radzi/via Unsplash

Isolamento social gera aumento de casos de violência doméstica em todo o mundo

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Em Portugal, um comunicado recente da GNR refere que as queixas por violência doméstica registadas em Março diminuíram em relação ao período homólogo de 2019, mas reconhece que o período de isolamento social pode "suscitar um desfasamento mais acentuado entre o número de denúncias e o número de crimes praticados."

O alerta veio do Secretário Geral das Nações Unidas via Twitter. António Guterres lançou um apelo global no domingo para que se protejam mulheres e crianças “em casa”, desprotegidas pelo confinamento provocado pela pandemia da Covid-19 que exacerba a violência doméstica.

No vídeo que partilhou na rede social, refere que “nas últimas semanas, à medida que as pressões económicas e sociais pioraram e o medo aumenta, o mundo vive um surto horrível de violência doméstica”. “Peço a todos os governos que tomem medidas para prevenir a violência contra as mulheres e forneçam soluções para as vítimas como parte dos seus planos de ação nacional contra a covid-19”, apelou, solicitando o estabelecimento de “sistemas de alerta de emergência em farmácias e lojas de alimentos”, os únicos locais que permanecem abertos em muitos países.

“Devemos garantir que as mulheres possam pedir ajuda de maneira segura, sem que quem as maltrata perceba”, insistiu.

De acordo com dados das Nações Unidas, as chamadas para as linhas de ajuda triplicaram na China e duplicaram no Líbano e na Malásia em comparação com o mesmo período do ano passado. Na Austrália, motores de busca como o Google viram o maior aumento de buscas por “violência doméstica” dos últimos cinco anos.

Na Europa, países como o Reino Unido, França, Espanha e Itália já registaram várias mortes por violência doméstica desde que os bloqueios entraram em vigor. A linha de atendimento nacional de abuso doméstico do Reino Unido, por exemplo, disse na segunda-feira que houve um aumento de 25% nas ligações e os acessos ao site mais que duplicaram. Em França, os números oficiais mostram que os relatos de violência doméstica feitos à polícia aumentaram 36% em Paris, e 32% no resto do país após a entrada em vigor de suas restrições.

Com os tribunais fechados em muitos países, António Guterres diz que os países devem garantir que os agressores continuam a ser levados à justiça. Segundo o Secretário Geral, a resposta ao aumento da violência doméstica tem sido complicada pelo facto de a polícia e os serviços de saúde já estarem sob enorme pressão devido às exigências da pandemia.

A ONU refere ainda que muitos abrigos de abuso doméstico já estão cheios, enquanto outros estão a impedir a entrada de novas vítimas com medo de espalhar o vírus. Nesse particular, o governo francês anunciou que vai disponibilizar 20 mil quartos de hotel para vítimas de abuso, além de abrir novos centros de aconselhamento pop-up em ou perto de supermercados, e fornecerá 1 milhão de euros a organizações de apoio ao abuso doméstico.

Espanha e França introduziram iniciativas para incentivar as mulheres a denunciar abusos nas farmácias. A campanha “Máscara 19” pretende que, através dessa palavra-código, as mulheres que precisem de ajuda possam alertar o farmacêutico para entrar em contacto com as autoridades. Em França, o caso de uma mulher da cidade de Nancy tem sido dado como exemplo – depois de se dirigir a um dos poucos espaços públicos ainda em funcionamento, a mulher terá dito ao farmacêutico que estaria lá para comprar uma “máscara 19”. O farmacêutico rapidamente deu o alerta, e o homem foi detido pouco depois.

“Uma tempestade perfeita para comportamentos violentos e controladores à porta fechada”

Ecoando a mensagem do chefe da ONU, Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva do departamento das Nações Unidas dedicado às Mulheres, descreveu a situação de isolamento físico e social que muitos estados vivem actualmente como “uma tempestade perfeita para comportamentos violentos e controladores à porta fechada”. A violência doméstica já é, disse Mlambo-Ngcuka, amplamente subnotificada, com menos de 40% das mulheres que sofrem a procurar ajuda, e a pandemia está a dificultar ainda mais a denúncia, devido às “limitações no acesso de mulheres e meninas a telefones e a serviços públicos agora interrompidos, como a polícia, justiça e serviços sociais”. Estas limitações “alimentam a impunidade dos agressores”, alertou, acrescentando que, em muitos países, “a lei não está do lado das mulheres; um em cada quatro países não possui leis que protejam especificamente as mulheres vítimas da violência doméstica.” 

Não só as questões práticas do confinamento social fazem aumentar a propensão para mais casos de violência em casa. Judith Lewis Herman, renomeada especialista em trauma da Harvard University Medical School, referiu ao New York Times, refere que, mesmo do ponto de vista psicológico, o isolamento domiciliar, por mais vital que seja na luta contra o Covid19, “está a dar mais poder ao agressor” que já costuma isolar a sua vítima. “Se, de repente, as pessoas precisam de ficar em casa”, disse, “isso dá-lhe uma oportunidade para sentir legitimidade de dizer o que ela devia ou não estar a fazer”. 

Num relato feito à CNN, por exemplo, Simona Ammerata, que trabalha no abrigo para mulheres Lucha y Siesta, em Roma, Itália, conta que uma jovem a contactou, dizendo que o seu parceiro de quatro anos sempre foi controlador e abusivo, mas que ficou muito pior durante a fase de isolamento consequente do Estado de Emergência no país. “A dinâmica da violência em casa está a ficar muito séria”, disse Ammerata. “Ela pediu-lhe que saísse de casa e ele não quer. Ela diz que não tem para onde ir.”

No mesmo artigo do NYT acima referido, Judith Lewis Herman lembra que, além da violência física, que não está presente em todos os relacionamentos abusivos, ferramentas comuns de abuso incluem isolamento de amigos, família e emprego; vigilância constante; regras estritas e detalhadas de comportamento; e restrições ao acesso a necessidades básicas, como alimentos, roupas e instalações sanitárias – uma lembrança, aliás, que é também sublinhada pela ONU durante este período.

Em Portugal

Um comunicado recente da GNR refere que as queixas por violência doméstica registadas em Março diminuíram em relação ao período homólogo de 2019. Depois de, numa primeira conferência de imprensa conjunta com a PSP, ter sido dito o contrário, a GNR veio entretanto esclarecer os números, referindo que foram registadas 938 denúncias por violência doméstica, menos 26% do que em 2019. No seguimento, no último mês foram detidos 76 suspeitos de agressão e foram apreendidas 97 armas.

A diminuição no número de denúncias não significa, ainda assim, que tenham existido menos casos de abuso. “Conscientes que o período de maior isolamento social pode suscitar um desfasamento mais acentuado entre o número de denúncias e o número de crimes praticados, a GNR, através dos Núcleos de Investigação a Apoio a Vítimas Específicas (NIAVE), tem intensificado os contactos com as vítimas identificadas, no sentido de promover, se necessário for, um ajustamento das medidas de protecção das vítimas”, lê-se no comunicado.

A GNR recorda ainda que a violência doméstica é um crime público, e que qualquer pessoa pode fazer uma denúncia — online, neste link. Depois do e-mail de emergência — violencia.covid@cig.gov.pt —, o Governo lançou um serviço de mensagens curtas (3060), que funciona como um reforço da linha telefónica para vítimas de violência doméstica (800 202 148). O serviço de sms funciona sete dias por semana, 24 horas por dia, é gratuito e não é rastreável, ou seja, não surgirá na factura emitida pela operadora de comunicações.

A ideia partiu de Rosa Monteiro, secretária de Estado para a Cidadania e a Igualdade, partindo do princípio que “20% da população portuguesa não tem e-mail”.

O Governo anunciou entretanto no início desta semana que vai abrir duas novas estruturas temporárias de acolhimento de emergência, com vagas para 100 pessoas, para apoiar vítimas de violência doméstica durante a pandemia de Covid19. As duas valências de acolhimento juntam-se às 65 estruturas já existentes e que estão em pleno funcionamento. A gestão dos espaços será feita por entidades com experiência de intervenção nesta área, que articulam com as autoridades de saúde para agilizar a realização de testes ao novo coronavírus.

Esta é apenas uma das medidas do Governo para fazer face à actual situação de isolamento social imposta, tendo sido desencadeado no início de Março um plano coordenado de contingência em matéria de prevenção e combate à violência doméstica em articulação com a Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.

O plano do Governo inclui também a criação e reforço dos meios de atendimento à distância, o reforço do atendimento telefónico, a monitorização das situações em acompanhamento com maior regularidade, a designação de uma equipa para situações e pedidos de urgência, atendimento presencial em situações urgentes e a articulação com as autarquias caso exista necessidade de acolhimento imediato.

Também cá, chegou a ser divulgada a campanha “Máscara 19”, pela Assembleia Feminista de Lisboa. Num primeiro comunicado, a AFL referia que num primeiro momento contava apenas com a adesão dos farmacêuticos do Centro Hospitalar Universitário de São João, no Porto, e aguardava resposta da Comissão para a Cidadania e Igualdade e da Ordem dos Farmacêuticos, a quem foi apresentada a proposta. Mas uma peça do Expresso diz, no entanto, que “a campanha nunca funcionou nem está a funcionar” por não ter sido concertada entre as autoridades responsáveis pela matéria. A AFL admitiu entretanto falhas na comunicação com as instituições contactadas, e apagou parcialmente a publicação no Facebook mas mantém-na no Twitter e Instagram.

Em declarações ao Expresso, tanto a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, como a Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade, como a APAV (A Associação de Apoio à Vítima) mostraram reticências em apoiar a campanha dentro dos moldes em que foi divulgada, por considerarem que pode ser “irresponsável” lançar acções deste género sem que estejam 100% concertadas com as autoridades competentes, e pode acabar por colocar as vítimas em perigo uma vez que o código foi amplamente divulgado, correndo-se até o risco de o banalizar. A AFL fez entretanto um comunicado onde esclarece todos os contornos do caso, e refere que há, ainda assim várias farmácias portuguesas a aderir à iniciativa.

[infobox title=’Serviços de apoio à vítima de violência doméstica’]

  • APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima Linha de Apoio à Vítima: 116 006 (dias úteis das 9h às 21h) apav.sede@apav.pt
  • Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género 800 202 148​ (24 horas por dia) Pode procurar serviços de apoio em http://www.guiaderecursosvd.cig.gov.pt
  • Serviço de Informação a Vítimas de Violência Doméstica 800 202 148 (24 horas por dia) violencia.covid@cig.gov.pt Linha SMS 3060
  • APAV – Associação Portuguesa de Apoio à Vítima Linha de Apoio à Vítima: 116 006 (dias úteis das 9h às 21h) apav.sede@apav.pt
  • UMAR – União de Mulheres Alternativa e Resposta 218 873 005​
  • Associação de Mulheres Contra a Violência (AMCV) 21 3802160 / sede@amcv.org.pt

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Índice

  • Rita Pinto

    A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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