Rui Tavares Lanceiro: “A crise das democracias é uma crise desta década, nem sequer é da década que vem”

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DR / Luís Catarino

Rui Tavares Lanceiro: “A crise das democracias é uma crise desta década, nem sequer é da década que vem”

Em entrevista ao Shifter, Rui Tavares Lanceiro, professor auxiliar na Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, fala da situação húngara, do Governo de Viktor Orbán e dos desafios que os Estados-Membros vão ter de lidar nesta década.

Em tempos de pandemia, a Hungria navega contra a corrente da União Europeia. Depois da autossuspensão do Parlamento, o Governo húngaro legisla agora por decreto. Bruxelas já se fez ouvir e Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeia, disse que iria agir “caso essas restrições excedam o que é permitido”. No ano passado, a Hungria foi o primeiro país da União Europeia a ser declarado parcialmente livre pela Freedom House.

Em entrevista ao Shifter, Rui Tavares Lanceiro, professor auxiliar na Faculdade de Direito na Universidade de Lisboa, fala da situação húngara, do Governo de Viktor Orbán e dos desafios que os Estados-Membros vão ter de lidar nesta década.

Licenciado em Direito, Rui Tavares Lanceiro possui um doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas, na área do Direito Administrativo Europeu. Nutre interesse em investigação nas áreas do Direito Constitucional, Direito Administrativo e Direito Europeu. Já marcou presença em várias conferências e escreveu artigos científicos no ramo da Política. Atualmente é também assessor do Gabinete dos Juízes do Tribunal Constitucional.

Em entrevista ao Público no ano passado, Paulo Rangel referia que uma das crises que a União Europeia (UE) atravessa é a crise das democracias. Concorda com essa afirmação? Isto vai ser um problema com o qual a UE vai ter de lidar nesta década?

Concordo em geral com a afirmação e concordo especialmente com a afirmação no momento em que ela foi produzida. A crise das democracias é uma crise desta década, nem sequer é da década que vem. O Estado de direito é um dos pilares essenciais em que assenta a União Europeia. Parte da ideia sempre foi a de que era uma união de Estados democráticos. Um dos critérios de adesão, os chamados Critérios de Copenhaga, é exatamente o respeito pelos direitos fundamentais e isso está inscrito logo no artigo 2.º do Tratado da UE. Portanto, cada Estado-Membro tem o seu próprio sistema político – podem ser monarquias, repúblicas, estados federais, estados unitários, o que seja –, mas são todos democracias e respeitam os direitos fundamentais. Mas isso começou a ser erodido há uns cinco anos para cá. Fala-se muito da Hungria, é o caso onde isso aconteceu mais profundamente e mais rapidamente, mas também na Polónia, na Roménia, em Malta há problemas, em rigor também o Reino Unido tem problemas…

Há problemas gerais na qualidade das democracias dos Estados-Membros, mas é verdade que agora a União Europeia está confrontada com uma situação para a qual não estava preparada, que é o facto de existir uma espécie de “voltar para trás” para um regime iliberal. Isto acontece porque, aquando do grande alargamento a Leste, a União Europeia sentiu necessidade de criar um mecanismo de vigilância do estado da democracia. A ideia era a de que não só os Estados-Membros tivessem de cumprir aqueles critérios democráticos e respeito pelos direitos fundamentais no início, no momento da adesão, mas depois também continuarem a manter-se assim. O problema é que no sistema que se arranjou – exatamente porque “democracia”, “respeito por direitos humanos” e “Estado direito” podem ser conceitos diferentes nos vários Estados-Membros –, decidiu-se não dar o poder de controlo ao Tribunal de Justiça (TJ) da União Europeia. Normalmente é o Tribunal de Justiça que faz esse controlo: o de cumprimento pelos Estados-Membros das suas obrigações. Neste caso, criou-se um mecanismo no artigo 7.º do Tratado da UE, que é um mecanismo de controlo maioritariamente político, ou seja, são os Estados-Membros que se controlam a si próprios, de certa forma… Ou melhor, são os outros Estados-Membros que controlam a qualidade da democracia ou o respeito pelo artigo 2.º.

Nesse âmbito, o vírus que está agora a impossibilitar a tomada de decisão neste contexto é: por um lado é difícil aos Estados-Membros votarem contra Estados-Membros irmãos, mas, sobretudo, porque se exigiu a regra da unanimidade (menos o país que está a sob suspeita). Isto pressupunha então que só acontecia essa situação de violação num dos países. Acontece que, a partir do momento em que ocorre em mais do que um país, eles se protegem uns aos outros. Nunca existirá uma tomada de decisão contra a Hungria porque a Polónia veta sempre e nunca existirá contra a Polónia porque a Hungria veta sempre. Portanto, a partir daí, o mecanismo está bloqueado. Por outro lado, isto exige tempo, porque a burocracia da União demora tempo a actuar. Prefere-se sempre o diálogo e a União está feita para o diálogo.

Há problemas gerais na qualidade das democracias dos Estados-Membros, mas é verdade que agora a União Europeia está confrontada com uma situação para a qual não estava preparada, que é o facto de existir uma espécie de “voltar para trás” para um regime iliberal.

Mas essa burocracia faz prolongar o processo…

Há uma margem de tempo em que há uma consolidação de facto de uma situação nova. Depois, quando a União já está a actuar, já é em reação e já é muito difícil desfazer coisas que já foram feitas. Por exemplo, existe uma entidade equivalente à Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD) na Hungria – uma entidade que todos os Estados-Membros têm de ter por causa de uma diretiva da União – e como o Governo húngaro queria destituir o presidente da CNPD húngaro mas não tinha poder para tal, o que eles fizeram foi extinguir aquela entidade e criar outra. Isto é uma maneira muita elaborada de conseguir despedir uma pessoa. Isto chegou ao Tribunal de Justiça, que disse que não podia ser, mas que já era tarde de mais. É a União confrontada com os seus dois priores pesadelos: a dificuldade de decidir rapidamente e, por outro lado, o que fazer quando uma das partes não está a cooperar de boa fé.

Já aqui falámos da Hungria. No ano passado, foi o primeiro país da UE ser considerado parcialmente livre segundo um relatório sobre a liberdade mundial da Freedom House. Concorda com esta designação?

Isso é verdade e a Freedom House utiliza uma série de métricas para avaliar a qualidade da democracia, como o nível da liberdade de imprensa, etc. Aquilo a que nós temos acesso do que se passa na Hungria é limitado por um número de razões: desde logo a língua húngara é muito difícil de ser aprendida e percebida. Portanto, isso é logo uma barreira. Muitos dos textos não estão traduzidos ou então é muito difícil encontrar uma tradução em inglês… À medida que o regime se vai consolidando, é muito difícil encontrar alguém que fale livremente sobre a situação, mesmo colegas académicos. O que eles estão a fazer agora é desmantelar a independência da Academia de Ciências húngara, que é aquela que dá verbas para a investigação. Portanto há mais ou menos consciência de que o académico húngaro pode eventualmente ser confrontado com as afirmações que faz mais tarde. A não ser um húngaro que esteja a viver na Hungria, ninguém consegue verdadeiramente avaliar o estado em que está a democracia naquele país.

Só a ideia de um Governo poder legislar já é esquisita, mas ao governar por decreto, o Governo pode legislar sem a existência do controlo por parte do Parlamento.

Uma questão mais técnica: quando dizemos que Orbán governa por decreto, o que é que isso significa em termos políticos e que consequências é que tem para a democracia?

Nós estamos sob o estado de emergência. O estado de emergência em Portugal está previsto na Constituição e obedece a um formato: é temporário, de 15 em 15 dias tem de ser renovado, o Parlamento reúne-se e autoriza, o Governo dá a opinião, naqueles 15 dias tem de ser elaborado um relatório… O nosso sistema está construído para existirem freios e contrapesos para tentar assegurar que isto é só um estado de exceção provisório e que, quando tudo voltar à normalidade, também voltamos à normalidade constitucional. O que aconteceu na Hungria, no entanto, foi que, ao aprovarem o estado de exceção, por um lado adiaram eleições, não estabeleceram um prazo limite aparente, criaram crimes através da nova legislação de resposta à Covid-19 que ficaram permanentemente no código penal. O Parlamento autossuspendeu-se e, por isso, deu-se a possibilidade ao Governo de legislar por decreto. É preciso ter em conta que nós estamos habituados a que o Governo aprove decretos-lei e legisle, mas isto é uma especificidade portuguesa. Nos outros Estados-Membros, é muito raro o Governo ter o poder de legislar ou, então, o poder legislativo do Governo é extraordinário. Só a ideia de um Governo poder legislar já é esquisita, mas ao governar por decreto, o Governo pode legislar sem a existência do controlo por parte do Parlamento. No nosso caso, se o Governo legislar sobre algo que o Parlamento discorda, o Parlamento revoga. O Parlamento pode demitir o Governo através de uma moção de censura. A partir do momento em que o Parlamento húngaro se autossuspende, todo o poder reside no Executivo, que pode concentrar em si o poder legislativo. É um bocadinho assustador.

Acredita que essas medidas tomadas foram com o objetivo de combater o vírus ou houve segundas intenções por parte do primeiro-ministro húngaro?

Há muitas receitas diferentes para dar resposta ao vírus, mas não estou a ver um outro Estado-Membro que tenha ido tão longe. Ninguém suspendeu indefinidamente dando poder ao próprio órgão a que se delega o poder. Nenhum outro Estado adiou eleições a este nível… É verdade que a França adiou as eleições locais e há essa discussão também na Polónia: se é bom ou não adiar as suas eleições presidenciais. A verdade é que na legislação especial de Covid-19 húngara também há uma dimensão permanente, nomeadamente a criação do crime de espalhar falsidades e também a possibilidade de o Governo determinar o confinamento em casa de alguém. Uma das coisas que o Governo húngaro faz é utilizar regimes parecidos noutros países como justificação para o seu.

Por exemplo, nós, em estado de emergência, de facto também temos a possibilidade de alguém ter de ficar confinado em casa, por ordem das autoridades de saúde e sem ordem judicial. Uma coisa diferente é ter este poder num contexto em que um Parlamento se suspendeu e não há aquele controlo normal de democracia. Em rigor, o Governo húngaro, se quiser, pode determinar o confinamento em casa de qualquer pessoa, bastando-lhe invocar que sabe que esteve em contacto com um paciente de Covid-19. Por isso, de uma forma muito geral, sim, acho que se pode afirmar que o Governo húngaro utilizou a resposta à Covid-19 como um pretexto para consolidar o poder.

Há quem defenda a retirada do Fidesz, partido do Viktor Orbán, do PPE, a sua família política no Parlamento Europeu. Isso é possível nos termos da lei? E o que aconteceria caso se aprovasse essa expulsão?

Não é exatamente isso. Parte do motivo para lentidão da resposta da União Europeia face à situação húngara é o facto de o Fidesz fazer parte do PPE. E como tem resultados eleitorais muito bons na Hungria, isso significa que o seu contributo para o grupo parlamentar do PPE no Parlamento Europeu é importante, bastante importante. No início, o Viktor Orbán era visto como um combatente anticomunista, um lutador pela democracia na Hungria, um liberal… E, portanto, há um bocadinho esse apelo a uma memória histórica de Viktor Orbán. É verdade que, por isso, o PPE e os primeiros-ministros que vêm de partidos que estão incluídos no PPE impediram uma resposta mais rápida relativamente à Hungria. É por isso que, por exemplo, há um procedimento de artigo 7.º aberto contra a Polónia por indicação do Conselho, mas não há contra a Hungria por indicação do Conselho. Foi o Parlamento Europeu que teve de o abrir.

O que se fala aqui, então, não é propriamente de o expulsar do Parlamento. Fala-se na possibilidade de ser expulso deste grupo parlamentar. Para expulsar o Fidesz do PPE, isso teria de seguir as regras internas do PPE. O Fidesz já foi suspenso, mas também seria possível o seu afastamento, coisa que ainda não aconteceu. E é verdade que se ele fosse retirado, isso retirava-lhe um certo verniz de respeitabilidade e talvez facilitasse a atuação contra ele por parte do Conselho, do Parlamento…

De uma forma mais drástica, a União Europeia pode expulsar algum Estado da zona comunitária?

A resposta simples é: não. A única forma em que está previsto nos tratados para um Estado sair é por sua própria vontade, ao estilo Brexit. Segundo o artigo 7.º, o castigo máximo que pode acontecer é a suspensão do direito de voto. Ou seja, uma das vias é tornar a situação tão incomportável para um Estado-Membro que ele pede para sair. Não se quis dar à União esse direito de expulsão de um Estado.

Não considera paradoxal um país que não respeita o espírito da União Europeia em matéria de direitos ter de continuar na zona comunitária?

Sim, é paradoxal. Se determinado Estado viola as leias da União Europeia expressas, a Comissão e o Tribunal de Justiça dão resposta e vão condenando. A Polónia foi condenada mais uma vez há pouco tempo por violação da independência do poder judicial. Mas, enquanto que, por exemplo, o Tribunal de Justiça já arranjou maneira de controlar a independência dos tribunais nacionais, outros princípios como a democracia ou o respeito pelos direitos humanos são muito mais difíceis de controlar. Quem fez a União não pensou nessa possibilidade. Nunca se pensou que isso seria possível e, quando se pensou, criou-se o artigo 7.º.

Hoje, não só a resposta à pandemia de Covid-19 vai levar a tensões ao nível da saúde pública e proteção civil, como acho que o grande tema vai ser a recessão económica que vem aí a seguir.

Sobre o futuro, o que é que vai marcar a agenda das instituições europeias nesta década?

Se me perguntasse isso há três meses, não tinha dúvida de responder que era o combate às alterações climáticas, o Green New Deal, a transformação da economia europeia… E já isto tem imensos problemas. Por exemplo, para a presidente da Comissão Europeia conseguir o acordo dos polacos teve que dizer que se ia disponibilizar imenso dinheiro para a conversão das fontes de energia no Leste. Isso era, para mim, sem dúvida, a próxima grande coisa. Hoje, não só a resposta à pandemia de Covid-19 vai levar a tensões ao nível da saúde pública e proteção civil, como acho que o grande tema vai ser a recessão económica que vem aí a seguir. A Comissão Europeia vai continuar a bater na mesma tecla, que é a do Green New Deal. Mas enquanto houver câmaras frigoríficas com mortos, não sei se as pessoas têm muita paciência para ouvir falar sobre isso.

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  • Gabriel Ribeiro

    Licenciado em Ciências da Comunicação e sempre com a câmara na mochila. Acredito que todos os locais e pessoas têm “aquela” história. Impulsionador da cultura portuguesa a tempo inteiro.

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