No ‘novo normal’, a bicicleta e o andar a pé fazem parte da cidade

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Foto de Kate Trifo via Unsplash

No ‘novo normal’, a bicicleta e o andar a pé fazem parte da cidade

Com os transportes públicos sob ameaça de perder passageiros, por medo e por restrições às lotação dos veículos, e com o automóvel a não ser uma alternativa sustentável, algumas cidades já estão a olhar para a bicicleta e para o andar a pé como parte do pós-confinamento.

Com o pico da pandemia já lá atrás na curva, a Europa afectada pelo Covid-19 começa a pensar no regresso à normalidade ou, pelo menos, a uma nova normalidade. São vários os países que, com o fim iminente dos estados de emergência decretados, começam agora a planear o pós-confinamento, redesenhando a economia e a vivência social com a ameaça do coronavírus presente mas a consciência de que um novo surto tem de ser evitado. Nessa espécie de novo normal, em que vamos viver com o Covid-19, é crucial repensar a cidade para manter as recomendações de distância social e não contacto humano das autoridades de saúde.

Em Portugal, o medo de andar de transportes públicos é real, apesar do reforço de limpeza e desinfecção de autocarros, barcos e comboios por parte dos diferentes operadores. No pós-confinamento, vão existir regras: máscara obrigatória e lotação limitada para diminuir o risco de contágio e evitar multidões. Com os autocarros e metros a não poderem circular tão cheios como habitualmente, é preciso olhar para alternativas que não passem pelo automóvel. A sua preponderância não é sustentável, porque as cidades não aguentam mais trânsito, e é preciso combater a poluição mais do que nunca, principalmente se esta surge associada à propagação de pandemias como a do Covid-19.

Actuação tem de ser rápida

A bicicleta e o andar a pé podem preencher as necessidades de deslocação das pessoas, respondendo à urgência de evitar congestionamentos nos transportes. Várias cidades europeias e mundiais já perceberam isso e estão a dar espaço a ciclistas e peões, criando ciclovias temporárias, alargando passeios ou pedonalizando ruas à custas de lugares de estacionamento ou de faixas de circulação automóvel. Lisboa e Porto, cidades onde o automóvel tem um peso percentual muito grande, não anunciaram ainda quaisquer medidas no âmbito de mobilidade e urbanismo. Já na Régua, no distrito de Vila Real, optou-se por transformar os passeios estreitos em corredores de sentido único através do desenho de setas unidireccionais – isso em ruas estreias, só com um sentido de trânsito automóvel mas com uma fila de estacionamento que poderia ser removida para o alargamento do espaço pedonal.

O “exemplo” da Régua (screenshot via TVI24)

Para Rosa Félix, ciclista urbana e investigadora no Instituto Superior Técnico, o futuro próximo das cidades portuguesas “vai depender muito das decisões políticas que forem agora tomadas”. “As viagens nos centros urbanos são, na sua maioria, inferiores a 5 km de distância, por isso a bicicleta pode ser fortemente incentivada.” Dado como exemplo o teletrabalho, a especialista em mobilidade entende que esta pandemia mostrou que “mudar comportamentos não é, afinal, algo de outro mundo” e que o mesmo pode acontecer com os modos activos de transporte, como a bicicleta. “Criar as condições de segurança para os mais cépticos em relação à bicicleta possam experimentá-la e depois adoptá-la seria a coisa que as cidades podiam fazer agora, com ciclovias instantâneas, que não têm de ser muito trabalhadas na sua qualidade; têm é de ser realmente práticas, úteis e minimamente seguras”, refere a investigadora em conversa com o Shifter.

Em cima na mesa, não pode estar unicamente a mobilidade ciclável, sendo a pedonal igualmente importante nesta altura. O Manual de Espaço Público da Câmara de Lisboa, por exemplo, determina que um passeio deve ter no mínimo uma largura de 1,20 metros, mas no caso de isso não ser possível (por exemplo, nas zonas históricas), não menos que 0,90 metros. Como é que se vai manter a distância de outros indivíduos recomendada de dois metros em passeios estreitos e por vezes invadidos de forma abusiva pelo automóvel? Será que as autoridades fiscalizadoras vão apertar o cerco ao estacionamento em cima do passeio, um problema silencioso em Lisboa mas comum a muitas localidades portuguesas?

Foto via Shifter

Os exemplos lá de fora

Ainda esta pandemia não tinha atingido o pico e em Berlim, sem as burocracias do costume que fazem as intervenções arrastarem-se, apenas com tinta amarela e pilaretes de plástico, nasciam as primeiras ciclovias temporárias. Algumas dessas ciclovias resultaram do redimensionamento de trajectos já existentes, reduzindo a largura das faixas destinadas ao automóvel; outras foram criadas onde ainda não havia infra-estrutura, retirando estacionamento, por exemplo. Noutras cidades alemãs, os residentes pedem o mesmo.

Foto via Câmara de Berlim

Budapeste vai usar esta oportunidade para testar ciclovias temporárias que poderão tornar-se fixas se se tornarem populares; Bruxelas vai priorizar bicicletas e peões no centro da cidade a partir de Maio, criando novos corredores cicláveis em artérias principais; Paris e toda a região envolvente vai investir 300 milhões de euros na criação de ciclovias temporárias e permanentes, seguido o plano já estabelecido; Milão vai intervir em 35 quilómetros com passeios mais largos e ciclovias temporárias de baixo custo, limitando as velocidades de circulação automóvel.

Barcelona vai fechar ao trânsito as laterais de duas das principais artérias da capital catelã, Gran Vía e a Diagonal, alargar o espaço para peões em 30 mil metros quadrados, criar 21 quilómetros de ciclovias e melhorar os trajectos de autocarros. O objectivo é possibilitar o distanciamento social nas ruas, impedir o uso massivo de transportes públicos e garantir que as pessoas não se refugiam no automóvel. As medidas são provisórias, mas como refere Janet Sanz, responsável de Urbanismo de Barcelona, podem tornar-se permanentes. Janet fala ao El País na “necessidade de haver espaço para a saúde na agenda urbana” e Rosa Alarcón, vereadora de Mobilidade, diz ser importante “garantir que não passamos de uma crise de saúde para uma crise ambiental”.

Imagem via Câmara de Barcelona

Outras cidades pelo mundo criaram ou estão a planear criar ciclovias temporárias: em Lima, no Perú, as ciclovias planeadas para os próximos cinco anos vão ser construídas em três meses; em Quito, no Equador, as ruas também estão a ser adaptadas com soluções cicláveis de baixo custo; e em Bagotá, na Colômbia, foram adicionados 117 novos quilómetros de ciclovias temporárias à rede fixa de 550 quilómetros para libertar espaço nos transportes públicos e evitar a proximidade entre pessoas. Já cidades como Londres e Glasgow, no Reino Unido, tornaram os seus sistemas de bicicletas partilhadas gratuitas para estimular o seu uso – em Lisboa foi feito o mesmo mas apenas para profissionais de saúde.

Esplanadas em lugares de estacionamento?

Outras cidades, nomeadamente na Austrália, decidiram tornar automatizar o atravessamento de peões, evitando que as pessoas tenham de pressionar um botão (que pode estar contaminado) para pedir o verde. Algumas cidades norte-americanas e canadianas também estão a aplicar esta medida. Outras optaram por fechar ou condicionar o acesso de automóveis em algumas artérias para estimular a bicicleta e o caminhar durante a pandemia, como mapeia a publicação CityLab. Já fora do âmbito da mobilidade mas ainda no campo de humanizar a cidade, o Presidente da Câmara de Jersey City, nos EUA, antecipa a troca de lugares de estacionamento por esplanadas para restaurantes, de forma a aumentar o espaço útil destes no pós-confinamento, em que será preciso garantir distâncias de segurança entre clientes e limitar lotações.

Reconhecendo Lisboa como uma cidade que costuma acompanhar as tendências de outras metrópoles, Rosa Félix diz que “até pode haver vontade e a pressão de associações e pessoas” para se concretizarem ciclovias temporárias em Lisboa, mas a estrutura camarária desmembrada em gabinetes e assinaturas, pouco prática e demasiado processual, pode fazer com que as intervenções “não se concretizem com a urgência que é necessária”. “Estas ciclovias têm um carácter instantâneo, não podem demorar dois meses, três ou um ano a serem colocadas.” Rosa ressalva que a existência de fundos comunitários como parte de uma estratégia europeia pode ajudar a alinhar as estratégias de cada país, acelerando a reconversão das cidades para acomodar melhor peões e ciclistas.

“Vamos ver se o medo gerado não vai levar pessoas que por acaso até tinham o automóvel parado em casa a usá-lo, até porque agora têm as vias mais descongestionadas”, comenta. As bicicletas eléctricas, que têm um motor que dá assistência nas subidas, podem ser a resposta para cidades com declives como Lisboa ou Porto, mas há outras medidas além da mobilidade que podem ser postas em prática, como o desfasamento dos horários de trabalho, a criação de turnos e a adopção alargada do teletrabalho. “Imagina, se 25% das pessoas passarem para regime de teletrabalho, numa rua com quatro vias uma delas fica liberta. Não é precisa tanta capacidade, e isso abre caminho para esplanadas, passeios mais largos e ciclovias.”

Mudanças forçadas pela pandemia

Muitas das mudanças começaram a ser pensadas e aplicadas durante o pico da pandemia. O confinamento decretado pelo mundo fora colocou quilómetros e quilómetros de asfalto a descoberto, evidenciando que, sem carros nas ruas, fica uma imensidão de espaço sem utilidade e que não serve as necessidades humanas, colocando pressão em cima dos parques urbanos e das áreas de lazer limitadas que rapidamente atingem os níveis de saturação. Apesar das recomendações para permanecer em casa, as pessoas precisavam de sair na mesma, umas para ir trabalhar, outras para brincar ou manter intacta a sua sanidade mental, através dos chamados passeios higiénicos.

Foto de Richard Ludwig via Unsplash

Jill Warren, da European Cyclists’ Federation (ECF), refere que “andar de bicicleta é a actividade perfeita” para manter a actividade física e o equilíbrio mental durante o confinamento obrigatório. “É um dos meios de transporte mais seguros, quando se tira os veículos motorizados da equação – como aconteceu agora. E mantém-te automaticamente à distância recomendada pelos virologistas”, acrescentou. Mas, mesmo sem bicicleta, a limitação dos parques urbanos e das áreas de lazer das cidades centradas no automóvel, tornou-se bastante evidente durante esta pandemia, como nota a Wired. Esta é uma oportunidade para repensar as áreas urbanas, seguindo as orientações há muito reclamadas por urbanistas.

OMS recomenda bicicleta e caminhar

A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou, sempre que possível, a utilização da bicicleta ou o andar a pé nas deslocações necessárias durante a pandemia, uma vez que “permite a distância social enquanto ajuda a manter os requisitos mínimos de actividade física, que pode ser mais difícil devido ao aumento do teletrabalho e ao acesso limitado ao desporto e a outras atividades recreativas”. Para quem não pode usar a bicicleta ou o caminhar, a OMS deixa outras recomendações: evitar as horas de ponta, evitar tocar nos corrimões e outras superfícies, proteger a boca e o nariz, evitar táxis e, no caso do automóvel privado com mais pessoas, ter em conta a higiene pessoal e dos outros passageiros.

O plano de Barcelona (imagem via Câmara de Barcelona)

A Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) endereçou ao Governo português um conjunto de sugestões para a valorização das duas rodas no fim do confinamento. A MUBi defende, entre outras medidas, o fecho de ruas ao tráfego automóvel, a supressão de vias de trânsito, o alargamento e desobstrução de passeios, a criação de ciclovias de emergência, a redução dos tempos de espera nas passagens de peões semaforizadas. A mesma associação pede ao Governo fundos de apoio para as autarquias implementarem estas medidas e que as autoridades portuguesas recomendem aos cidadãos que nas deslocações necessárias considerem, sempre que possível, a bicicleta ou caminhar.

56% dos inquiridos num estudo recente realizado pelo ACP, em colaboração com a TSF e Jornal de Notícias, não tem ciclovia em nenhuma parte do percurso para o trabalho ou escola, e 60% não as tem no acesso aos locais onde costuma fazer compras. Ainda assim, a maioria (85%) diz saber andar de bicicleta, apesar de a maior fatia (57%) não o fazer há mais de 6 meses. Só 39% não tem qualquer bicicleta no agregado familiar; 61% tem pelo menos uma. Carlos Barbosa, presidente do ACP, teme que “depois desta pandemia, as pessoas vão querer estar mais protegidas e o uso do automóvel vai ser aumentado, quando devia ser reduzido”; contudo, o responsável não tece uma posição favorável à utilização da bicicleta, mantendo o status quo e salientando que os portugueses “não utilizam tanto as bicicletas, como alguém quer fazer crer por causa da crise”.

Foto de Claudio Schwarz Purzlbaum via Unsplash

Um grupo de 50 académicos e especialistas em saúde pública britânicos assinaram uma carta aberta a pedir ao Governo para não desencorajar a bicicleta e o caminhar. O Presidente da Câmara de Nova Iorque, Bill de Blasio, incentivou os cidadãos a usarem estes modos de transporte para o trabalho sempre que possível. O Governo espanhol já anunciou que vai promover a bicicleta a nível nacional, como fez, por exemplo, o Ministro da Saúde alemão, Jens Spahn (CDU). A bicicleta é um veículo de baixo custo (pode custar menos de 100 euros), por isso acessível a todos os cidadãos, ao contrário do automóvel. É um modo de transporte que se tem provado saudável para o corpo e mente, não poluente e seguro durante a pandemia. Pode ajudar a evitar o congestionamento dos transportes públicos e a poluição atmosférica, responsável por cerca de 15 mil mortes prematuras por ano em Portugal e um factor associado a taxas mais elevadas de mortalidade por Covid-19.

Pistas para o futuro

Mudanças de comportamentos ao nível do urbanismo e mobilidade podem, assim, ajudar a conter a propragação do Covid-19, apesar de não serem solução para todos os problemas. A densidade urbana é um factor propício à propagação do vírus, como escreve o CityLab num excelente trabalho sobre a ‘geografia do vírus’, “o mesmo agrupamento de pessoas que torna nossas grandes cidades mais inovadoras e produtivas também as torna, e nós, vulneráveis a doenças infecciosas”. Além de zonas densamente populosas, com largos números de visitantes e turistas, como Londres e Nova Iorque, há outras geografias de risco. Centros industriais como Wuhan, China, ou o Norte de Itália, conectados às cadeias de distribuição, mecas de turismo como Itália, Suíça e França, e mesmo áreas rurais que atraem muitos visitantes, são susceptíveis à propagação de vírus.

Se calhar este Covid-19 acabou por destapar uma necessidade de mudar urbanisticamente a nossa economia e sociedade numa escala que ainda estaremos bem para compreender.

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