Apple e Google juntam-se para rastrear Covid-19… mas devemos ficar descansados?

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Imagem de Shifter, com foto de Engin Akyurt/Unsplash

Apple e Google juntam-se para rastrear Covid-19… mas devemos ficar descansados?

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Um projecto paradigmático da ideologia que prevalece na disseminação tecnológica um pouco por todo o globo. Uma iniciativa proprietária, centralizada em duas empresas com fins lucrativos.

Num anúncio com tanto de inédito como de surpreendente, Apple e Google anunciaram esta sexta-feira, dia 10 de Abril, que vão unir esforços no desenvolvimento e distribuição de uma tecnologia de monitorização de telemóveis, que permita rastrear a cadeia de possíveis infectados pelo Covid-19 – como aqui e aqui explicámos –, sem comprometer a sua localização dos utilizadores.

As empresas fazem-se valer do seu controlo quase absoluto no mercado dos smartphones, através dos sistemas operativos Android e iOS, para oferecer uma solução que rapidamente chegue ao telefone de cada pessoa, ficando depois apenas dependente da activação por parte das autoridades de saúde através de uma API.

Em termos tecnológicos – e segundo o que se sabe –, a ideia das duas tecnológicas não vai muito para além daquilo que estaria a ser pensado e programado, por exemplo, pelo projecto pan-europeu Pan-European Privacy-Preserving Proximity Tracing; o plano é anonimizar os telemóveis através de mecanismos criptográficos e activar o sistema apenas quando um contacto se cruza com uma pessoa cuja infecção venha a ser confirmada.

Aplausos ou preocupação?

Assim, as principais vantagens apresentadas pelas duas empresas são simples de perceber. Por um lado, Apple e Google têm a capacidade de distribuição tecnológica, a pontos tais que podem até ser questionáveis; as empresas podem simplesmente incluir a tecnologia nas próximas actualizações de software, promovendo uma espécie de enforcement à sua utilização, que não passe pela subscrição voluntária e o download de uma app de um novo fornecedor, como no projecto europeu que usamos como referência.

Por outro lado, as empresas valem-se da sua notoriedade do mercado, numa espécie de operação de charme, que convence os utilizadores habituais e acríticos de que se é feito pelas duas empresas com certeza será bem feito, e remete para a sombra iniciativas como as que nascem no seio académico – para além do projecto pan-europeu, que junta universidades de vários países numa estrutura aberta, existem pelo menos mais dois grupos a desenvolver tecnologia semelhante em Stanford e no MIT, bem como grupos mandatados pelo Governo alemão e de Singapura.

Se esta iniciativa das duas gigantes da tecnologia foi merecedora de aplausos por parte de alguns internautas, outros, como o experiente jornalista da área da tecnologia Evgeny Morozov não a vêem com os mesmos olhos.

Num tweet recente, Morozov ironizou de que a este ritmo, em Maio, estaríamos a celebrar uma aplicação que recolhesse os nossos dados desenvolvida pela Cambridge Analytica sintetizando a problemática que esta parceria pode representar. Tal como no caso da Cambridge Analytica, o problema não foi propriamente aquilo que estava estabelecido no contrato entre as duas partes nem as potencialidades da aplicação, mas antes o que foi feito à revelia e sob o manto da opacidade das empresas privadas. Do mesmo modo, ser céptico em relação à união de forças desta iniciativa não se prende directamente com as intenções que nos são reveladas mas com a convergência entre a falta de escrutínio de que, por definição, estas empresas gozam e o poder que já têm.

Se a sua capacidade tecnológica pode ser útil – como reporta a imprensa internacional, o facto de serem as duas empresas a programar a aplicação logo a partir do sistema operativo pode torná-la mais eficiente ao nível de consumo energético –, por outro o reforço do seu poder torna-se óbvio. Algo que podemos confrontar, por exemplo, com os detalhados relatórios que a Google já tem sobre mobilidade sem que ninguém contribuísse directa e voluntariamente para que existissem.

Acima das suas possibilidades

A opção pela tecnologia Bluetooth em detrimento da localização é um ponto na direcção certa da protecção dos dados dos utilizadores; contudo, a propriedade sobre a tecnologia que a tornará opaca aos utilizadores – que dificilmente terão acesso ao código-fonte, para além da API – permitirá às empresas fazer um uso dos dados que pode estar para além da nossa imaginação. Cristina White, da Universidade de Stanford, é quem o diz. Ouvida pela Wired, a investigadora, responsável por um dos projectos supra referidos, refere que em termos de funcionamento interno da aplicação não existe muita informação e que é preciso escrutinar o seu funcionamento para garantir que não existem violações de privacidade.

Este caso junta-se assim à longa lista de iniciativas em que as tecnológicas desenvolvem tecnologia para cumprir funções, se quisermos, acima das suas possibilidades e responsabilidades, algo que deveria merecer uma discussão muito mais alargada na nossa sociedade contemporânea.

Não se trata, nem se pode tratar, de uma discussão e avaliação que se baseie em simples preconceitos ou juízos de valor e rótulos simplistas como o de ‘altruísta’ ou ‘egoísta’ – para todos os efeitos, falamos de duas das empresas com maior poder no mercado e sem o escrutínio de outras instituições com a mesma dimensão, como os Governos ou as uniões políticas. É, por isso, importante que a transparência seja uma condição sine qua non da sua actuação para que no futuro não possamos lamentar o excessivo poder que lhes passámos para as mãos.

É importante escrutinar

Em suma, este projecto é paradigmático da ideologia que prevalece na disseminação tecnológica um pouco por todo o globo. Uma iniciativa proprietária, centralizada em duas empresas com fins lucrativos – já os projectos académicos que usamos como referência são um exemplo de como uma mesma solução poderia advir de uma estrutura cooperativa, descentralizada e com fonte aberta.

A arquitectura de sistemas responsáveis pelo processamento de quantidades de informação é importante para garantir que, por defeito, existem mecanismos de regulação independentes e o acesso facilitado à fonte da tecnologia; é importante escrutinar e, neste tipo de complexos sistemas tecnológicos, garantir que existem meios para o fazer, nomeadamente que a única porta de contacto com o sistema não é uma API unidireccional de partilha apenas de determinados dados.

Índice

  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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