Um reputado grupo de epidemiologistas do Imperial College em Londres publicou um estudo sobre o impacto de medidas de mitigação e supressão no controlo do surto pandémico de COVID-19. De acordo com este estudo, as medidas de mitigação ou supressão incluem intervenções não farmacológicas como quarentena, fecho de escolas, distanciamento social ou isolamento de casos. A conclusão do artigo é essencialmente a de que as medidas de mitigação não são suficientes para não sobrecarregar os cuidados de saúde, enquanto as medidas de supressão até o poderão ser, mas o seu levante poderá levar a um novo pico da epidemia. Ora, o que me saltou à vista neste artigo, para além da aparente conclusão de inexistência de solução, foi a não simulação de medidas não farmacológicas com recurso à tecnologia. De facto, é de estranhar estarmos em 2020 e a Europa estar a tentar controlar a pandemia com se estivéssemos em 1920: isolamento social, fecho de fronteiras e, em geral, realização de poucos testes.
É evidente que esta falta de resposta coordenada e desengonçada se deve a uma falta de preparação e desvalorização que, mais do que europeia, foi ocidental, mas deixemos essa introspecção para quando os dias não forem preciosos e foquemo-nos antes no que os orientais estão a fazer de bem e de mal, para que possamos rapidamente ajustar a nossa resposta.
Ora, é de comum acordo que o isolamento prolongado não é uma solução para nenhum país. E não o é porque a economia sofre e não nos podemos deixar chegar ao ponto em que as pessoas não morrem do SARS-CoV-2 hoje, para morrerem do frado económico causado pelo combate a este amanhã. Urge, então, procurar outras soluções, para aguentar os meses em que ainda não existirá uma vacina. Uma boa maneira de começar é olhar para os países que conseguiram controlar o surto sem recorrer a medidas de isolamento generalizado à população, como são os casos de Singapura ou da Coreia do Sul (Figura 13b e ver também aqui). Nestes países, para além de uma cultura de testes massiva, o rastreamento de cadeias de transmissão é minucioso e, para isso, é preciso recorrer a smartphones.
Vigiar contactos através de smartphones acende-nos logo umas red flags orwellianas e com a devida razão, pelo que a seguir se discute esta possibilidade sobretudo através de exemplos daquilo que a recolha de dados para combate a uma pandemia pode ser e daquilo que não deve ser. Importa notar que, recentemente foi publicada uma simulação pela Universidade de Oxford cujos resultados apontam para que o rastreamento telefónico seja capaz de reduzir o número de reprodução para um valor abaixo de 1, o que frenaria a epidemia.
Comecemos por Singapura
Singapura tem primado pela transparência com que tem libertado os dados. De facto, a quantidade e qualidade dos dados oficiais é tal que permitiu construir uma dashboard como esta: https://co.vid19.sg/. Visitem, explorem e admirem o grafo das cadeiras de transmissão que foi possível construir. Cliquem num nodo e fiquem a saber um pequeno resumo do caso. Porque é que ter tanta informação disponível é bom? Porque em situações de alerta o ser humano precisa de comer informação e se não a obtiver de meios oficiais, vai inventá-la. Com o advento das redes sociais, o resultado dessa necessidade é o de que as notícias falsas florescem. Aliás, em Singapura existe também uma linha WhatsApp oficial. A prontidão e transparência com que Singapura fornece a informação, além de frenar a imaginação e a emergência de notícias falsas, embute nos cidadãos uma confiança nas autoridades necessária para a gestão do surto pandémico. Recentemente, Singapura lançou uma app para fazer o rastreamento dos contactos dos indivíduos com COVID-19; mais uma vez, tirem algum tempo para explorar as FAQs do site. Em resumo, declaram que os dados são encriptados e o que é guardado não é a geolocalização, mas antes um registo dos contactos captados por Bluetooth. Além disto, estes dados são guardados somente no telemóvel do utilizador, sendo que apenas o número é guardado em servidores, de modo a poderem contactar os indivíduos que estiveram na proximidade de um caso confirmado. O utilizador pode revogar o consentimento a qualquer altura por e-mail e os seus dados serão apagados do servidor. Isto é, de modo geral, aquilo que os médicos de saúde pública fazem. Mas fazem-no manualmente e sujeitos a vieses de memória. Ou seja, perguntam aos casos confirmados onde estiveram e com quem estiveram e esperam que as respostas sejam específicas e abrangentes de modo a conseguirem frenar a cadeia de transmissão a tempo. À partida, a app de Singapura parece ser transparente, mas como alguém a favor de software open source, não posso deixar de dizer que ficaria mais descansada se disponibilizassem o código. Pese embora o bom exemplo que Singapura parece dar, há que deixar aqui o alerta de que o governo de Singapura é um governo que, nos últimos anos, tem sido mais caracterizado pela sua eficácia do que pela sua democraticidade, especialmente no que diz respeito à preservação da liberdade de expressão. Todavia, este parece ser um acordo que os cidadãos singapurenses já aceitaram há muito tempo, como se pode ler aqui.
Coreia do Sul
A estratégia da Coreia do Sul passa, para além de um programa de testes massivo, por recolher dados GPS para prevenir que os cidadãos em quarentena a violem, não só via app, mas também via cartão de crédito. Aliás, a Coreia do Sul parece não usar apenas uma app, mas várias, com diferentes propósitos, desde a não violação da quarentena, até à informação de contactos infetados. A legislação para tal, pelos vistos, já existe desde o surto MERS que afetou a Coreia do Sul em 2015.
Seguem-se 3 exemplos que têm sido pouco transparentes ou até enganadores: China, Israel e Irão.
A China classifica o estado de saúde dos cidadãos em cores: verde, amarelo e vermelho. Mas não lhes explica como é feita esta classificação e também não lhes disse que partilha os seus dados com a polícia. Temos aqui a receita para a desconfiança e o medo, duas características de um governo autoritário. Ora, os tempos de pandemia não podem ser um pretexto para os governos autoritários apresentarem a vida e o Big Brother como um ou exclusivo mal amanhado. Que os governos democráticos repudiem sempre estas medidas.
Israel passou a lei que permite recolher dados para fazer o rastreamento de pessoas infetadas com COVID-19 fazendo um bypass ao parlamento. Se há coisa que não precisamos numa pandemia é de desrespeitar os poderes constitucionalmente instalados, portanto a solução israelita também é, desde logo, riscada. Quanto ao funcionamento da app em si, também não consegui encontrar informação.
O Irão é um completo manual daquilo que nunca se pode fazer. Para já, desinformam os cidadãos quanto ao objetivo da aplicação, dizendo que esta permite detetar infeção por SARS-CoV-2 — vamos todos deixar um massivo LOL de luto por este disparate — enquanto, na realidade, recolhe dados dos cidadãos. Num país onde abundam as suspeitas sobre a realidade do estado do surto, esta é uma violação aos cidadãos.
Voltemo-nos agora para os Estados Unidos da América. Um mau exemplo, até agora, na gestão do surto, via https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistração trumpiana, mas ainda sem dados sobre o que diz respeito a rastreamento por smartphone. No entanto, que não se pense que não estão já a tratar disso. Dado o historial do governo americano no que diz respeito aos escândalos sobre a proteção de dados, diria que, a priori, não partem de numa boa posição de confiança.
Até agora, no campo das potências mundiais, temos a China a abusar da tecnologia para moldar os seus tiques autoritários e os EUA sem líder num estado assim-assim que não faz prever bons resultados.
Emerge a pergunta: e a União Europeia?
À data da escrita deste texto, não encontrei nada sobre as intenções da EU se lançar num projeto comum de rastreamento de contactos de casos confirmados via smartphone. No entanto, o European Data Protection Board lançou um comunicado sobre o assunto dirigido aos estados membros que essencialmente diz que o podem fazer, desde que cumprindo a legislação de proteção de dados geral da EU. Ora, isto é uma resposta que me parece um bocado passiva por parte da EU. A EU tem poderes limitados no que diz respeito à saúde pública, não podemos esquecê-lo, mas também não podemos esquecer que estes são tempos extraordinários que vão exigir uma EU forte para lidar com as consequências. Para já, a EU tem a seu favor não ter escândalos sobre proteção de dados, como tem o governo americano, tendo, até investido esforços na sua legislação. Não poderá agora legislar os termos em que o rastreamento por smartphone fosse feito na EU e, se possível, recomendar a aplicação de uma app comum? É muito mais fácil ter centenas de milhões de pessoas a escrutinar uma app do que ter menos milhões de pessoas a escrutinar 27 apps, uma em cada estado membro. Importa notar aqui que, no que diz respeito a iniciativas nacionais, já existem estados membros a negociar recolha de dados com as operadoras de telecomunicações, nomeadamente Alemanha, Áustria, Bélgica e Itália.
Exemplos de protótipos não faltam. Em 2010 já havia o FluPhone, desenvolvido na Universidade de Cambridge. Mais recentemente, surge a PrivateKit no MIT que, de acordo com este artigo poderá estar prestes a entrar numa fase de testes. E surgem até projetos independentes e open source.
Até ao momento, a resposta que a EU deu à pandemia foi fechar-se de forma descoordenada e até voltar as costas aos seus estados membros. Uma abordagem perigosa que pagará caro, caso não adquira rapidamente uma postura mais cooperativa. É urgente haver uma resposta transparente que devolva a confiança aos seus cidadãos. As ferramentas tecnológicas existem e os países ocidentais vão, inevitavelmente, voltar-se para elas, com todos os dilemas éticos que estas apresentam. Cabe à EU dar o exemplo de como combater uma pandemia, em 2020, com tecnologia e cooperação, sem pôr em causa a democracia.
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Texto de Juliana Couras
Estudante de Medicina na Universidade do Porto e de Engenharia Computacional na Universidade de Aveiro. A tentar desbravar a Neurociência e a fazer mais perguntas do que a dar respostas sobre o mundo.
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