Como é viver na China com o Covid-19 (coronavírus)? Um relato na primeira pessoa

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Foto de Nuno Dores/Shifter

Como é viver na China com o Covid-19 (coronavírus)? Um relato na primeira pessoa

Não, não estamos infectados. Estamos só entediados.

Há cerca de um mês, o mundo ficou em alerta com o aparecimento de uma nova estirpe do coronavírus com origem em Wuhan, na China. Fecharam-se fronteiras. Companhias aéreas suspenderam voos de e para a China. Quem cá ficou, é aconselhado a ficar em casa. Quem saiu, não sabe quando volta. Negócios fechados. Cidades paradas. Como é então viver na China nesta altura?

Em Shanghai, é mais provável morrer de tédio do que de Covid-19

Fora do epicentro, os números não são assustadores e são mais animadores a cada dia que passa. Sim, é altamente contagioso. Sim, teve um impacto enorme em Wuhan onde tudo começou e onde não houve controlo e prevenção. A realidade é que, à data de hoje (19/2), morreram 2 pessoas em Shanghai por complicações relacionadas com o novo coronavírus. 2 em 24 milhões. E Wuhan até é considerada uma cidade vizinha de Shanghai, distando 800km uma da outra. É provável que neste momento hajam mais casos de cabin fever do que infectados com Covid-19.

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Isto porque numa cidade como Shanghai, difícil é ficar parado. Há sempre coisas para fazer, eventos a acontecer, amigos para ver. É uma cidade que se vive. É por isso normal que quem cá habite se habitue ao movimento, a qualquer hora do dia. Scooters de um lado para o outro em entregas. Buzinas. Gente, gente, e mais gente nos passeios. Damn, até scooters nos passeios. Tudo estava aberto, 24 horas por dia, 7 dias por semana. A toda a hora.

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E agora? O vazio

Devido às recentes medidas de prevenção do governo local, Shanghai é hoje uma cidade fantasma. Já o era durante o período do Ano Novo Chinês – altura em que a população volta às suas terras de origem para celebrar a quadra com a família. Era expectável que o movimento voltasse a 3 de Fevereiro, com a maioria da população a voltar ao trabalho. Mas esse regresso foi posto on hold, com um impacto significativo na economia.

São poucos os negócios abertos – apenas lojas de conveniência, farmácias e algumas mercearias mantém as portas abertas. Os restaurantes só estão autorizados a fazer take-away e delivery. Praticamente não há carros nem scooters a circular, muito menos pessoas a pé. Sair de casa, só com um propósito muito específico. Ir às compras, esticar as pernas e pouco mais. Depois da explosão de casos em Wuhan – especialmente por falta de acção e prevenção do governo local e nacional – há agora um maior cuidado em evitar que Wuhan 2 aconteça.

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Todas estas restrições têm gerado uma tensão quase invisível. Por um lado é compreensível que estas medidas extremamente restritivas tenham de ser tomadas e seguidas para evitar que a epidemia se espalhe. Por outro, há já vozes discordantes em relação ao governo e a Xi Jinping pela forma leviana como ignorou o problema em Wuhan e tomou acção demasiado tarde, especialmente quando se deu a morte de Li Wenliang – o médico whistleblower que a 30 de Dezembro tentou avisar os colegas e foi intimidado pela polícia por perturbar a ordem pública.

Máscaras, termómetros em riste e mãos limpas

Neste momento, as chegadas a qualquer grande cidade chinesa são alvo de um controlo apertado. Quem chegar a Shanghai, é obrigado a preencher um questionário onde indica de onde veio. Quem prestar um falso depoimento, é punido por lei. Quem vier de Wuhan, tem um período de quarentena obrigatório. Para os restantes, o período é opcional, mas altamente recomendável. É feita uma leitura da temperatura corporal através de um thermo scan. Os taxistas que te levam do aeroporto para casa usam máscara e circulam com as janelas abertas para o ar circular dentro do carro.

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À entrada dos compounds ou dos shikumen, é feito um novo controlo de temperatura através de um termómetro de infra-vermelhos. Este procedimento é também repetido sempre que se entra num café ou restaurante – os que estão abertos. Há desinfectante para as mãos em todos os estabelecimentos, disponível tanto para empregados como para clientes. É feita a desinfecção dos espaços e bancadas a cada 2 horas, no mínimo. Sem máscara, é barrada a entrada.

Se antes era possível encontrar máscaras de todos os tipos à venda em qualquer convenience store, hoje em dia é uma miragem. Em vendas online, os preços das máscaras dispararam para o dobro ou triplo. O mesmo com garrafas de hand-sanitizer. E mesmo quando ficam disponíveis, nem sempre se consegue a entrega das mesmas, devido à falta de kuaidis – os guerreiros de scooter que tudo entregam em menos de nada. Para manter os níveis de prevenção e combater a escassez de máscaras, o governo de Shanghai já iniciou o racionamento de máscaras. São vendidas a preço de fabrico, limitadas a 5 unidades por semana por cada household.

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O regresso à normalidade

É expectável que a partir do início de Março as coisas voltem à normalidade. Lentamente, os negócios começam a reabrir depois de um duro mês de Fevereiro. Esta quebra na produtividade chinesa está a começar a ter impactos ao nível da economia local, nacional e global. Está previsto que o governo active um plano de ajuda a pequenas e médias empresas, injectando capital e aliviando a carga fiscal. Gigantes mundiais como a Apple e a Nike, com fábricas na China, estão a sofrer com o Covid-19, adiando lançamentos de novos produtos por falta de mão-de-obra nas fábricas. As empresas já voltaram ao trabalho, com a grande maioria dos trabalhadores a trabalhar a partir de casa e a ligar-se por conference call sempre que necessário.

O regresso aos níveis de produtividade anteriores ao Ano Novo Chinês e ao boom de coronavírus ainda pode demorar um pouco. Mas não tenho dúvidas que serão feitos todos os esforços para que a economia recupere o mais rápido possível.

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Alguns analistas prevêem que esta situação irá ajudar ainda mais a acelerar o desenvolvimento da China enquanto país e economia, com o online a tornar-se ainda mais vital no futuro.

Se a China já é um gigante mundial de e-commerce, esta crise pode ter dado a estocada final no offline shopping, com as marcas a equacionarem transformar os seus pontos físicos em pequenos hubs logísticos, mais ágeis e de fácil acesso para os entregadores.

Passar mais tempo em casa pode tanto ser uma realidade para filhos para para os pais, com as aulas online a novas políticas de work from home, aliviando um pouco a cultura de trabalho 9-9-6 na China.

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Relativamente à saúde e segurança e higiene alimentares, há sinais de que o governo já começou a banir a venda e comercialização de animais exóticos nos wet markets – evitando assim potenciais novas estirpes. Mas não só. Todos estes cuidados de higiene trouxeram para a sociedade chinesa a importância da prevenção e desinfecção de espaços comuns que, sendo sincero, era quase nula ou inexistente em muitos casos.

A única certeza neste momento é de que a China um país diferente, pronto para reinventar à velocidade do 5G.

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Uma palavra para quem chegou até aqui

O Covid-19 não é o bicho-papão que os media um pouco por todo o mundo fazem parecer. Se tens hábitos de higiene básicos como lavar as mãos antes de comeres, não tens nada com que te preocupar. Podes continuar a ir sem medos ao teu restaurante asiático favorito – mesmo que seja o Boa Bao ou O Asiático do Chef Kiko. Se há uma coisa que viver na China me ensinou é que os asiáticos não são todos iguais. Da mesma forma que todos os Chineses não são de Wuhan e é muito improvável que lá tenham estado nesta altura.

Numa altura em que enchemos o peito e afirmamos que somos contra o racismo (#SomosTodosMarega), é importante dizer que estamos em 2020 e o Síndrome de Restaurante Chinês não pode voltar – se não sabes o que é faz um Google por Chinese Restaurant Syndrome. E se por acaso vires alguém a usar máscara num transporte público, lembra-te antes de começares a olhar de lado: é mais prejudicial o teu olhar do que a máscara dela. É que ao menos a máscara ajuda-a a proteger de uma possível contaminação. Já do teu julgamento, nem por isso.

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