Uncut Gems: este filme não é para ‘cardíacos’

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Uncut Gems (imagem via A24)

Uncut Gems: este filme não é para ‘cardíacos’

O trio maravilha Josh, Bennie e Adam fura pelas nossas salas de estar dentro com o filme mais caótico, barulhento e exaustivo dos últimos 10 anos.

Em 2009, tinham os irmãos Josh e Benny Safdie acabado de desenvolver a primeira versão do guião de Uncut Gems e, na mente deles, Adam Sandler já era a perfeita personificação do joalheiro Howard Ratner. Fãs devotos do ator/comediante desde infância – das personagens que interpretou no Saturday Night Live, dos seus espetáculos stand-up, dos vários discos musicais que lançou e, como é mais que óbvio, das comédias ridículas que tanto o popularizaram no mainstream, como antagonizaram o mundo da crítica cinematográfica –, os irmãos Safdie viam em Sandler alguém com uma aura mística que fundia uma imprevisibilidade explosiva com um forte carisma e entusiasmo, que muitas vezes roça o infantil, mas que também tem um outro lado quasi-trágico que, nas raras vezes em que se sente, é duma intensidade esmagadora.

Este último ponto destacou-se quando Sandler saiu do seu registo habitual e decidiu fazer Punch-Drunk Love (2003) com Paul Thomas Anderson, em que propositadamente subvertia o estereótipo “Sandlaresco” na personagem de Barry Egan – que, sob a vestimenta dum forte fato azul e sempre com um termo de metal na mão, agia através duma panóplia de maneirismos estranhos e exagerados porque não conseguia de outra forma expressar a sua inaptitude e tristeza perante a vida. Foi no recente episódio do podcast da A24 em que os Safdies conversam durante uma hora com PTA sobre Sandler (e que belíssima hora esta), que Josh descreveu a personagem de Barry como “monólito intemporal”, a perfeita amálgama dos talentos ambivalentes de Sandler. Então, carregando isto tudo como bagagem criativa, lá foram os Safdies abordar a mítica figura de Adam Sandler para este protagonizar aquele que sempre foi o projeto de sonho deles.

Escusado será dizer que Sandler recusou. Mas, em vez de baixarem os braços e afogarem as mágoas em álcool e drogas, os Safdies embarcaram numa longa e frenética jornada de uma década, de pesquisa obsessiva, refinamento e de orgulho… que, provavelmente, também teve a sua dose de álcool e drogas, mas numa dose que não passa de um detalhe não relevante.

Os irmãos aventuraram-se pelo Diamond District de Nova Iorque – onde o pai destes trabalhou durante uma boa parte da sua vida – interagindo diretamente com a cultura joalheira e os seus representantes, descobrindo os detalhes e as idiossincrasias do negócio dos penhores e da venda/revenda. Ao mesmo tempo que esta excursão de traços antropológicos decorria pela cidade onde cresceram, os Safdies começaram a transpor os dotes que adquiriram a fazer documentários falsos para aquilo que seria um verdadeiro cinema de rua. Daddy Longlegs (2009), uma série de episódios em que os irmãos retratam o que estes sofreram na infância com o seu pai errático (interpretado por Ronald Bronstein, que começou posteriormente a colaborar com eles na escrita e edição dos seus filmes), e Heaven Knows What (2014), uma potente história sobre toxicodependência baseada na vida de Arielle Holmes, jovem mulher que encontraram enquanto investigavam o Diamond District (e protagonizada por ela mesma), provaram o jeito que os irmãos tinham para um cinema independente realista, que trazia à memória o melhor do trabalho desenvolvido por John Cassavetes. Mas, apesar disto tudo, ainda lhes faltava qualquer coisa, uma certa intensidade e genica que ainda não estava exatamente no ponto.

Não sei se os Safdies tinham consciência plena disto, mas algo os moveu a fazer Good Time (2017), um dilacerante thriller capaz de derreter qualquer cara, que combinava um estilo urbano “à la Scorsese” com aquele efeito acídico e irrequieto que pontuava o trabalho de Robert Altman em filmes como California Split (1974).

Uncut Gems (imagem via A24)

Colmatada esta falha, o interesse de Sandler foi capturado instantaneamente, e o esqueleto da máquina ambulante que se tornaria Uncut Gems partiu da estação e finalmente chegou até nós, não fazendo questão de simplesmente parar à nossa frente e abrir delicadamente as suas portas para que nos abriguemos calmamente sob o seu teto. Oh não, nada disso. De dedo do meio orgulhosamente em riste, mandando para o c****** mais velho qualquer ideia preconcebida de trajeto seguro e previsível, o trio maravilha Josh, Bennie e Adam fura pelas nossas salas de estar dentro com o filme mais caótico, barulhento e exaustivo dos últimos 10 anos. Um “salve-se quem puder” que abalroa tudo e mais alguma coisa que tenha o infortúnio de lhe surgir ao caminho. Isto pode parecer mera hipérbole, mas se têm algum tipo de problema cardíaco, respiratório ou de ansiedade, não se aproximem de Uncut Gems. O grau de pânico que esta besta é capaz de instaurar até na mais pacífica das almas não tem precedentes, tudo porque os Safdies aplicam todo o virtuosismo técnico e negrume humano que recolheram ao longo das suas carreiras e combinam-nos com tal precisão quântica que é bem provável terem concebido um novo elemento para a tabela periódica, elemento este que condensa em si toda ideia e praticidade de “caos controlado”.

Uncut Gems (imagem via A24)

Com isto no ar, fica a fundamental questão: o que é que é Uncut Gems? Pois bem, o filme foca-se numa série de desventuras do já mencionado Howard Ratner, joalheiro judeu nova-iorquino que sente um constante impulso para roçar a periferia ténue e frágil da sua sorte, fazendo aposta arriscada atrás de aposta arriscada com tudo o que tem ao seu dispor (até mesmo o dinheiro e pertences de outros), ao mesmo tempo que tenta equilibrar a gerência da sua loja, a implosão do seu casamento, e a relação extraconjugal que mantém com uma das suas empregadas. A chegada duma opala negra não refinada às mãos de Howard desencadeia um efeito bola-de-neve de apostas ainda mais impulsivas e de riscos ainda mais desmedidos, dos quais o protagonista recolhe em igual medida momentos de desespero absoluto e explosões de excitação praticamente sexual  – um dos momentos mais hilariantes do filme ocorre precisamente quando Howard, viajando num táxi pela noite nova-iorquina, se apercebe que venceu uma aposta que tinha tudo para dar torto, levando-o a atingir um verdadeiro orgasmo repleto de “oh my gods” e derivados.

Mas lá está, estas explosões de êxtase ocorrem só quando as coisas lhe correm bem, o que não é de todo frequente.  A maior parte do tempo, a coisa dá merda da grossa, e daí advém aquela tensão que tanto tem de extenuante como de intoxicante, gerada pela incerteza do consegue/não-consegue que cada aposta de Howard empurra diante de si. Sempre que pode, este atira-se de cabeça para os cenários menos viáveis e – digamos até – mais estúpidos que consegue arranjar, criando uma constante névoa de desespero nas faces das várias personagens com que tem de interagir: a frustração e desprezo da sua (ainda) mulher Dinah (Idina Menzel); a manipulação subtil da sua sedutora amante, Julia (Julia Fox); a crescente frustração do seu parceiro de negócios, Demany (Lakeith Stanfield); a excentricidade e teimosia de Kevin Garnett, antigo jogador de basquetebol que se interpreta a ele mesmo numa versão repleta de superstições; o cunhado Arno (Eric Bogosian), ao qual Howard deve uma dolorosa quantidade de dinheiro; até o The Weeknd faz questão de aparecer numa das cenas mais intensas e visualmente impactantes do filme, que decorre no interior duma discoteca.

Com todos estes elementos no terreno, os Safdies conseguem facilmente aproveitar-se dos brinquedos humanos que têm em mãos e, como chico-espertos que finalmente deitaram as mãos aos produtos usados naquela aula de química bué fixe, começam a combinar todo o tipo de coisas para ver aquilo que faz faísca ou, no mais extremo dos casos, rebenta os cantos à casa.

As personagens em Uncut Gems não falam, mas gritam e gritam a sério, muito frequentemente fazem-no por cima dos berros das outras personagens que estão à sua volta, resultando em cacofonia após cacofonia de insultos, olhares malignos e de violência tanto verbal como física, tudo perfeitamente ancorado por uma mistura de som e um rigor técnico na edição que o tornam surpreendentemente digerível. E a banda sonora… Desde beats tribais, a sintetizadores capazes de nos arrastar para a galáxia de Andrómeda, com o ocasional cântico e coros angélicos, as composições sonoras de Daniel Lopatin (aka Oneothrix Point Never) elevam tudo aquilo que ocorre no ecrã a um outro nível de euforia completamente corrosiva, completamente celestial.

Mas calma lá, porque ainda temos de voltar a picar o ponto em Howard, mais especificamente no homem que o encarna: Adam Sandler. Adorado por muitos, odiado por tantos outros, cimentou uma posição única na indústria de Hollywood na qual pode fazer o que bem lhe apetece à hora que lhe for mais conveniente. Nos últimos anos, não tem sido o performer mais esforçado ou dedicado, mas em Uncut Gems vemo-lo num registo que condensa todas as suas qualidades como ator e comediante num mutante hiperativo que sempre que dá um passo em frente, acaba dois atrás, e fá-lo com o maior dos entusiasmos. Assistimos a um Sandler capaz de nos atingir com tal nível de irritação que corremos o risco de rachar os dentes com toda a vergonha alheia gerada, mas que também consegue criar em nós os mais genuínos momentos de felicidade e tristeza. Os Safdies convertem-no numa máquina absolutamente nojenta de empatia humana, e Sandler está mais que à altura de tal tarefa, oferecendo naquela que certamente será recordada como performance da vida dele, cada pedaço de conhecimento e experiência que este reteve ao longo dos seus mais de 30 anos de carreira.

Para acabar, olhemos para o início do filme, no qual a câmara nos transporta para o interior da tão fadada opala negra, que, ao contrário do seu exterior rochoso e pouco vistoso, alberga nebulosas e reflexos que acarretam de formas deslumbrantes todo o espectro de cores que nos é visível. Para Josh e Bennie Safdie, isto é cinema: uma ideia ou conceito que só por si tem um brilho que encanta o artista, e que depois deve ser aprimorado com dedicação e paciência para que consiga brilhar de igual forma aos olhos dos outros. Bem dito, bem feito. Nas palavras do imediatamente eterno Howie Bling, “this is how I win.” Ganha ele e ganhamos nós.

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  • Duarte Cabral

    Tem 26 anos, tirou o mestrado em Engenharia Informática e de Computadores e trabalha atualmente como engenheiro de dados. A sua real paixão reside nas artes, nomeadamente no cinema, literatura, e videojogos. Planeia eventualmente aventurar-se na área de cinema, mas até lá contenta-se a escrever sobre tudo aquilo que o inspira.

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