Da Vogue Itália à fotografia nacional: pistas para uma indústria da moda sustentável

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Da Vogue Itália à fotografia nacional: pistas para uma indústria da moda sustentável

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Em Janeiro de 2020, a Vogue Italia lançou uma edição totalmente ilustrada, numa espécie de manifesto de sustentabilidade. Falámos com Maria Rita, Nuno Vieira e Dulce Daniel, três fotógrafos de moda sobre o assunto.

No processo de montar uma revista, tudo começa e acaba no papel. Das primeiras notas editoriais até ao resultado final exposto nas bancas, é longo o caminho desde os esboços iniciais até à materialização das ideias – e às vezes pode parecer eterno, para quem o faz. Durante este trilho são lançadas, cada vez mais, questões sobre a sustentabilidade desse processo, que, por vezes, pode parecer uma odisseia e no meio da loucura se vai atropelando.

Quando transportamos este discurso para a indústria da moda temos duas opções: a primeira é aquela em que assenta na perfeição, e que se dirige a todas as revistas geridas por grandes grupos como a Condé Nast ou a Vice; a segunda habita nas alternativas que foram surgindo, e que nascem da falta de recursos ou do excesso de imagens. Mas será possível deitar abaixo os canônes que naturalmente se foram construindo, embrenhados no sistema capitalista e alimentados por marcas e grupos económicos?

Para assinalar a entrada em 2020, a Vogue Itália decidiu lançar uma edição que se tornou viral nas redes sociais, catapultada por designers, ilustradores, fotógrafos e bloggers de moda. Oito capas diferentes, totalmente ilustradas, servem de montra ao grande editorial de ilustração feito pelas mãos de ilustradores mais ou menos consagrados, com o objetivo de apelar ao brutal gasto de recursos por parte destas revistas para concretizar editoriais fotográficos em edições mensais.

David Salle, Vanessa Beecroft, Yoshitaka Amano, Gigi Cavenago & Andrea de Dominicis, Delphine Desane, Cassi Namoda, Milo Manara e Paolo Ventura representam a diversidade que somos e questionam o conceito do belo através de narrativas exploradas no interior que acabam por dialogar entre si, por muitos pontos de tensão estética que possam ter.

Um caminho que parte da ilustração e vai para… a ilustração?

A história da presença da ilustração de moda na revista Vogue não começa agora. Apesar de na versão italiana esta ter sido, oficialmente, a primeira edição ilustrada, o arco temporal da gigante da Condé Nast começa em 1892, na América, ainda que só em 1909 se tenha juntado ao grupo de publicações a que até hoje pertence. Antes de fotógrafos como Richard Avedon, Irwin Penn ou Helmut Newton terem revolucionado a forma como se mostrava as criações dos designers – numa visão mais próxima do real, como, aliás, se pensava de toda a fotografia –, as páginas e a capa da Vogue eram totalmente ilustradas.

Das cabeças de Georges Lepape, Benito ou até Giorgio de Chirico e Salvador Dali, saiu em tempos o imaginário idílico ou surrealista do que podia ser usar um vestido Paul Poiret ou Balenciaga, como uma espécie de portal para pensar os objetos. Com a entrada da fotografia, as hipóteses tornaram-se igualmente múltiplas e aparentemente infinitas, e os custos cresceram.

A Vogue Italia surgiu apenas em 1965, quando a fotografia já estava em cena e a indústria já movia alguns milhares de euros. Hoje, em 2020, volta ao passado que não chegou a ter para pensar os desafios que atravessa e que se prendem, naturalmente, com a sua sustentabilidade e a sustentabilidade do planeta.

No editorial que assina nesta edição, Emanuele Farneti, o editor-chefe da revista desde janeiro de 2017, começa por explicar o porquê de uma tomada de decisão tão firme. “Cento e cinquenta pessoas envolvidas. Cerca de 20 voos e uma dúzia de viagens de comboio. Quarenta carros à disposição. Sessenta encomendas internacionais recebidas. Luzes acesas por pelo menos dez horas seguidas, em parte carregadas por geradores a gás. Desperdício de comida dos serviços de catering. Plástico para embalar as roupas. Eletricidade para recarregar telemóveis, câmaras…” – inicia assim o seu discurso, elecando todos os recursos foram usados para a edição de setembro de 2019 – recorde-se que “setembro é o janeiro na moda” e que as revistas Vogue dedicam sempre a este mês o maior número.

Farneti assume que esta consciencialização não deve ser apenas pontual e refere que “a mudança é difícil”, mas questiona “como é que podemos pedir aos outros que mudem quando não estamos preparados para nos questionarmos a nós?”. Acaba o seu texto com duas grandes perguntas que pretende lançar aos leitores e à indústria: a primeira, “quem és tu?”, e a segunda, “a moda, com a sua obsessiva necessidade de novidade e o fetiche de posse, pretende ser verdadeiramente sustentável? E a busca pela diversidade, o verdadeiro mote dos nossos tempos, que chega em pouca quantidade e muito tarde, é sincera ou tática?”.

Porque, no fundo, está tudo ligado, o dinheiro poupado pela Vogue IT com esta jogada será entregue à Fondazione Querini Stampalia, um centro cultural de Veneza que sofreu com a tempestade de novembro do ano passado.

(Re)pensar a fotografia de moda

O hype gerado pela Vogue Italia serviu para virar os holofotes para um assunto já há muito pensado por alguns fotógrafos de moda. Maria Rita, Nuno Vieira e Dulce Daniel são três desses casos e partilharam com o Shifter o que fica depois das partilhas nas redes sociais.

“É um assunto que já foi abordado por muitas revistas, mas quando falamos da Vogue Italia temos que perceber o enorme impacto que cria no meio”, explica Dulce. “É claro que é um assunto em que todos já pensámos, mas foi sem dúvida um marcar de posição. Nós fazemos parte do problema e temos que fazer algo em relação a isso”. Maria Rita explica que “certamente foram poupados muitos recursos, sobretudo em viagens e transportes internacionais de roupas que são enviadas de vários países para as produções”.

“As questões dos recursos são, na minha opinião, um tópico que serve como uma granada de fumo. As problemáticas neste momento são de casting [de toda a equipa], do que pode dar legitimidade a um trabalho. Quando falamos de uma Vogue, as produções deverão ser sempre mega, por isso qualquer recurso para uma suposta produção mais ecológica é bem-vinda. Ainda assim, o papel vem das árvores e poucas são as publicações a fazer um esforço para o tornar mais sustentável”, acrescenta Nuno Vieira.

Apesar de a indústria da moda ser uma das mais preocupantes no que toca à pegada de carbono, Maria Rita nota que, no caso das sessões fotográficas, “sempre houve essa preocupação [da sua parte], mas que agora essa preocupação também vem por parte do cliente, o que torna o processo mais simples”. O mesmo acontece com Dulce, que inclui essa “gestão de recursos” no planeamento do seu trabalho – “tanto na gestão da equipa como do material”.

Se em tempos as produções megalómanas eram o modelo ideal, hoje o registo começa a ser feito num sentido contrário. Por muito que os grandes shootings continuem a acontecer nas revistas detidas, naturalmente, por grandes grupos económicos, “[as produções megalómanas] tiveram uma tendência decrescente” – defende Dulce. “Existe cada vez mais uma nova vaga de fotógrafos que optam por uma estética mais crua e real, numa abordagem mais genuína da fotografia. E acho que esta aproximação tanto num nível estético como técnico da fotografia tradicional vai ter a longo prazo um impacto muito positivo nesta área”, continua.

Maria Rita está certa de que “é possível reduzir recursos”, e “a prova disso é que já em algumas situações” fala “com profissionais da área que trabalham em países em que há o culto destas produções enormes e que não acreditam nos poucos recursos que temos em Portugal e nos resultados que conseguimos com estas limitações”. É nesse sentido que Nuno acrescenta que “em Portugal a questão das produções sustentáveis é uma não questão”, uma vez que “quando há tão pouco investimento e apoio nas produções das próprias publicações, não se pode ter outra abordagem”.

Quais são, afinal, os desafios de um fotógrafo de moda na era do tudo?

Somos constantemente bombardeados por imagens, numa era cada vez mais visual e com uma evidente democratização da fotografia. O conselho de Nuno Vieira para quem se continua a prender a modelos clássicos e que são precisos de repensar hoje é “leiam mais, vejam mais coisas e saiam da bolha”. A seu ver “a produção megalómana serve apenas para disfarçar um editorial que em si é poroso e, quando visto de um ponto de vista mais próximo, demonstra que é apenas um capricho da produção”.

“Enquanto há artistas a usar a revista e a fotografia de moda como plataforma para o projeto artístico, como por exemplo o Wolfgang Tillmans através da Dazed e da Arena Homme +, penso que tem de haver uma honestidade na mensagem que é passada. A chave está na mensagem que queres passar ao teu leitor”, sublinha o fotógrafo.

Olhando para o panorama atual, Maria Rita sente que “estamos a caminhar para um ideal no qual a fotografia de moda aborda temas pertinentes para a atualidade” e dá a Vogue Portugal como exemplo. Dulce remata o pensamento da colega e amiga: “A fotografia de moda sempre teve o poder de marcar tendências e tendo essa forma de ‘influenciar’ mentalidades deve assumir um papel de responsabilidade ao sensibilizar o público para os assuntos mais prementes”.

Para Nuno, pensar na condição dos fotógrafos e outros profissionais de moda na atualidade tem também que ver com “tempo e condições de trabalho”, mas que “há outras batalhas a vencer que não parece que sejam vencidas tão cedo”. “No mais imediato penso que a resolução passa mais por diversificar a oferta – uma vez que a paisagem é bastante homogénea. Já não vivemos num mundo em que existe uma ‘trend’, estas são cada vez mais múltiplas, e em Portugal há imensos nomes que não têm a luz que, a meu ver, merecem, como por exemplo o Rui Palma ou a Cristiana Morais, entre outros que têm o seu próprio registo e são bastante representativos das suas lutas.”

“A fotografia de moda para a nova década deve-se focar mais e mais em dar plataforma a uma mensagem que nos transporta para problemas contemporâneos. Se calhar os sonhos já não são numa escadaria doirada e um vestido de alta costura, com uma manequim cheia de curvas. As pessoas têm de voltar a acreditar que têm conteúdo relevante e sumo nas publicações, e para tal é preciso que efetivamente haja conteúdo relevante”, conclui Nuno Vieira.

De facto, o ideal de ontem não se prende com aquilo que poderá (ou deverá) ser o amanhã. É urgente pensar, mas, ainda mais importante, é preciso agir. Através de tomadas de posição como a da Vogue Italia a indústria da moda vai sendo desafiada a olhar para dentro e a reajustar o território que ocupa.

Plataformas como a Fashion Revolution vão lançando questões a esse território muitas vezes minado. No meio de um paradigma difícil de mudar, com circuitos demasiado fechados, vão sendo lançadas sementes de um pensamento alternativo que sempre foi importante mas que mais do que nunca precisa de ser ouvido. O problema não reside apenas no Fast Fashion, nas fábricas no Bangladesh e nas condições desumanas a que alguns trabalhadores são sujeitos. Está muitas vezes aqui bem perto, diante dos nossos olhos, em quiosques e bancas à distância de um passo.

 

Índice

  • Carolina Franco

    Carolina Franco tem escrito sobre cultura, juventude e direitos humanos. Cada vez acredita mais que está tudo ligado. É jornalista colaboradora no projeto de literacia mediática PÚBLICO na Escola, e co-editora do Shifter. Estudou Ciências da Comunicação no Porto, de onde é natural, tem pós-graduação em Curadoria de Arte e está a completar mestrado em Antropologia - Culturas Visuais com uma tese sobre a importância da representatividade trans* no audiovisual.

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