Uma conversa entre a preguiça e a produtividade

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Uma conversa entre a preguiça e a produtividade

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Chegou a vez de convidar o Pedro Ramos para este humilde “café” que é o Google Doc.

Depois de conversar com o Pedro Rebelo sobre influenciadores e com o Luís Cristóvão sobre futebol, chegou a vez de convidar o Pedro Ramos para este humilde “café” que é o Google Doc. Após ler o artigo do Pedro Ramos sobre o empreendedorismo, tropecei num tweet, et voilá, surgiu o mote para a conversa.

 

[Joana] Este tweet de Scott Young fez-me pensar: não só pelo conteúdo, mas também pelas respostas que se seguiram e que incluíam coisas como “escolher o horário de trabalho de forma a ter tempo para as crianças”, “fazer uma tarefa de cada vez”, “ler uma parte de um livro a meio do dia” ou “ter mais do que 20 minutos para almoçar”.  Grande parte destas tarefas ou actividades descritas são rotuladas como preguiça, sem que se olhe mais profundamente para as mesmas, enquanto meios para atingir um fim maior.

[Pedro] Sem dúvida. o que me parece é que estamos a fugir a uma realidade essencial, que é a de que andamos todos exaustos. Uns mais, outros menos, e a maioria (talvez) em negação acerca disso. Há em nós, coletivamente, uma força que nos impele para um trabalho sistemático, cansativo e abundantemente pobre em verdadeira produtividade. Claro que a produtividade falha porque nos faltam os mecanismos essenciais: o sono, o tempo para nos alimentarmos devidamente, o tempo para o exercício e, sobretudo, o tempo para reflectir. Quer a nível laboral, quer a nível pessoal. O erro é entrar em “modo automático”, levar tudo pela frente e não guardar o espaço para ir reavaliando. E isto, atenção, é extremamente difícil. Quais são as pistas que te parecem importantes nessa procura desse espaço?

[Joana] As pistas são, a meu ver, coisas subtis que, com o tempo, se tornam gritantes. Quando demoras muito tempo numa tarefa relativamente simples, quando acordas cansado e sem energia, quando detestas a segunda feira só por que isso significa voltar ao trabalho. O nosso organismo dá-nos imensos sinais, uns físicos, outros intelectuais e como não nos vemos como um todo, achamos que não é nada e ignoramos. Depois, há a pressão do “hustle”, do “work hard”, há os tweets dos bem sucedidos que se deitam tarde e se levantam cedo, há os textos no linkedin com os storytellings de trazer por casa a contar como o dia foi cheio e amanhã ainda há mais e até se trabalha ao domingo. Há a necessidade de estar sempre online e disponível, como se o prioritário e o urgente fossem um só. Perante isto, qualquer um se sente preguiçoso, acho que é o mais natural. Mas quando o corpo começa a dar sinal e o intelecto não rende como é habitual… “algo está podre no reino dos iogurtes”.

[Pedro] Concordo com isso. A pressão externa, que vem de um dado conjunto de expectativas e de ideias feitas acerca do que é que significa ser bem sucedido, e da receita para lá chegar, gera um stress absurdo. Foi também disso que quis falar no texto lá de cima: estamos condicionados por um pré-conceito de empreendedorismo, por mecanismos de um método que não nos satisfaz nem se adapta a nós. Hoje em dia há todo o tipo de modas surreais à custa da produtividade. Vejo dezenas de textos sobre acordar às 4 ou 5 da manhã, escrever não sei quantas palavras por dia, comer ou não comer isto e aquilo, etc. E isso é tudo errado, simplesmente porque não há uma fórmula única para todas as pessoas e para todos os percursos de vida. Este empreendedorismo de bolso só serve para aprofundar as desigualdades e as frustrações naqueles que, por um ou outro motivo, não podem aceitar as regras desse jogo. E essa é a esmagadora maioria silenciosa.

[Joana]  E os textos que dizem que temos de fazer 10 000 passos por dia para sermos saudáveis? Voltando ao empreendedorismo (uma palavra que tem DOR lá dentro, se reparares), podemos dizer que há uma espécie de ditadura do empreendedorismo? Ou será uma moda? Uma cena trendy – como a própria palavra trendy, vá?

[Pedro] Esse é mais um bom exemplo! A maior parte dessas ideias são, aliás, profundamente anti-científicas. Partem do pressuposto: “se pessoa X fez Y e passou a ser bem-sucedida, então Y é a receita para o sucesso de qualquer pessoa!”. Ora, não é assim que funciona. Mas a ciência não é tão apelativa, até porque, muitas vezes, no que diz respeito ao estilo de vida, a evidência já está produzida e resume-se naquilo a que podemos chamar o bom senso. O equilíbrio casa-trabalho, o equilíbrio sono-exercício, entre outros. Voltando à pergunta, acho que sim, há uma ditadura não escrita que gera uma pressão exagerada sobre as pessoas. Não sei se será uma moda ou se poderá ser revertida, porque neste momento há várias modas em simultâneo, algumas delas em sentidos opostos. Poderemos falar depois do movimento “slow” e toda a estética e ideologia associada, que acabam por ser forças de reação a isto que temos falado.

[Joana] Quanto ao bom senso, li algures que é uma flor que não nasce no jardim de toda a gente. E que me perdoe Descartes (para quem o bom senso era a razão), mas não é, de todo, a coisa mais bem distribuída do mundo. Concordo contigo quando afirmas essa ditadura não escrita, uma coisa subliminar, que se assume e não se questiona. Até há aulas e livros de empreendedorismo para crianças, como se, pegando na ideia expressa no título do teu texto, ficar na zona de conforto não fosse um desafio tão grande ou maior do que sair dela. Até porque, tal como dizes, há a questão dos contextos “e ainda” mais uma ideia subliminar: a ideia de que somos todos iguais. Não somos. Faz-me lembrar quando era miúda e me perguntavam se sabia Taekwondo, só porque o meu irmão treinava e até dava aulas. “Ah mas ele faz isso e tu não?”. Exacto. Somos seres humanos distintos. Eu e o meu irmão, eu e tu, eu e o CEO de sucesso que se deita às 2h e se levanta às 5h para escrever 3000 palavras antes de ver os e-mails.

[Pedro] Essa referência às crianças foi crucial. Este espírito já está a ser introduzido às novas gerações, e é assustador pensar nas consequências deletérias que poderão surgir. Não há duas pessoas iguais, de facto, e a pressa que temos em assumir que temos todos de chegar a um determinado sítio, a um objetivo que os outros definem para nós como admirável, essa pressa é que faz com que nos esqueçamos de olhar ao contexto. O burnout, de que se tem falado muito, é um bom exemplo daquilo que acontece quando levamos ao extremo uma determinada expectativa de trabalho árduo e doloroso. Os trabalhadores que são assoberbados por quantidades inaceitáveis de tarefas acabam por se tornar improdutivos, porque se tornam infelizes. Perdem a empatia pela missão que lhes cabe, pelos colegas, pelo mundo. E essa é a realidade de tantos milhares de trabalhadores em call-centers, escolas, hospitais, etc. Temos de parar para pensar: é este o futuro que queremos para a nossa relação com o trabalho?

[Joana] Essa tua última interrogação deixa-me incomodada. Perguntamos sempre pelo que queremos deixar para o futuro, ou o que queremos para o futuro. Ignoramos completamente o momento presente. Talvez a pergunta e, por conseguinte, a acção (ou a performance, se preferires), devesse ser algo como: “como quero que seja a minha relação de trabalho, aqui e agora?” Óbvio que estamos conscientes que a mudança não acontece com um estalar de dedos, mas tem de começar a acontecer. Essa projecção para o futuro, lança o foco para o desconhecido e o presente acaba por passar-nos ao lado. É como aquela situação em que, perante um amigo, dizemos: “temos de combinar um café”, sem chegar a apresentar um dia e hora para efectivamente fazer acontecer esse imperativo café.

[Pedro] Tens razão. Poderemos procurar a nossa mudança individual no imediato e pugnar por uma mudança coletiva no futuro, porque urge. Acho que esta conversa já deu para começar a alinhavar as ideias sobre o que cada um pode e deve fazer na sua vida para gerir melhor os desafios. Mas gosto sempre mais de pôr o ónus do contexto, no sistema, sem descurar a nossa responsabilidade cidadã de intervir. Feito o diagnóstico, estudada a doença, precisamos de avançar com a terapêutica. Muito obrigado pela oportunidade que me deste de reflectir sobre este tema. Sem dúvida é algo que vale a pena continuar a ter em conta, e que vale a pena ir lembrando à medida que nos deslocamos na vida. E espero que possamos retomar o tópico numa próxima oportunidade!

Nota: eu escrevo em desacordo com o AO90, o Pedro concorda com o AO90. Nem por isso deixamos de poder dialogar.

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  • Joana Rita Sousa

    Joana Rita Sousa é filósofa. Trabalha na área da comunicação e da cultura digital. É formadora e consultora, bem como uma série de coisas que ficam melhor em inglês:  digital strategist, community manager, copywriter e ghostwriter. Em Dezembro de 2018 criou o #twitterchatpt - e a vida no twitter, em Portugal, nunca mais foi a mesma. Dizem que é um unicórnio de leads.

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