Íamos só falar da mais recente mixtape de Blood Orange, mas depois…

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Blood Orange ou Dev Hynes (foto DR)

Íamos só falar da mais recente mixtape de Blood Orange, mas depois…

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A ideia deste artigo era ser sobre Angel's Pulse, o último trabalho de Blood Orange. Mas depois lemos que ainda antes do final do ano, Blood Orange assina um álbum de música clássica. E o artigo passou a ser uma ode ao homem por trás deste projecto musical: Devonté Hynes e a sua imprevisibilidade.

A ideia deste artigo era ser sobre a mais recente mixtape de Devonté Hynes, que assina artisticamente como Blood Orange, Angel’s Pulse. É o mesmo artista que cerca de um ano antes deu ao mundo o mega aclamado Negro Swan. Mas depois lemos que Hynes vai lançar um álbum de música clássica. Lemos que se vai chamar Fields e que sai dia 11 de outubro. Ficámos a saber também que foi Hynes quem escreveu as partituras, que foram então arranjadas e orquestradas pela Third Coast Percussion, a ensemble de Chicago vencedora de Grammy. E de repente torna-se imperativo falar de Dev Hynes como um todo, como aquilo que tem sido e significado para toda a indústria musical, uma lufada de imprevistos daqueles bons, que são como surpresas mais que agradáveis.

O génio clássico

Não é que a ligação de Hynes à música clássica seja surpreendente – o músico já admitiu em diversas entrevistas que as suas primeiras ingressões no universo musical foram através do género clássico, que começou por tocar violoncelo e piano, é fã de arranjos orquestrais, já tocou mais do que uma vez com o conceituado Philip Glass, que diz ser uma das suas maiores influências, e em 2017, até compôs uma peça clássica chamada “Suite Per il Servo Moro” durante uma residência artística em Florença, onde trabalhou em Negro Swan. Esse conhecimento clássico é sabido por todos os seus fãs e é facilmente perceptível por alguém que só agora se cruze com a sua música por ser palpável até nos seus trabalhos mais recentes – e por “clássico” não falamos da sonoridade sintetizador-dos-anos-90 que pauta a sua música, ainda que essa seja um clássico. Comentários no YouTube (de verdadeiros online experts…) referem-se a Devonté como “o Mozart ou Beethoven da nossa geração”, dizem que o seu “talento musical é mais do que genial”.

O que é surpreendente, é que num meio que é cada vez mais um negócio generalizado, com planos, marcas e marketings, o músico inglês radicado em Nova Iorque tenha tido um ano como este, em que obras, ideias e projectos parecem borbulhar em si até explodirem cá para fora, tudo da forma mais natural possível, numa personificação perfeita do que é transpirar música. A forma como os seus últimos e futuros trabalhos se sucederam e encadeiam, todo esse percurso, mostra a honestidade com que encara a música, como a expressão artística que é, orgânica e intrínseca por vezes, abrupta e imprevisível por outras.

Não podemos falar de Blood Orange como se só agora nos tivéssemos apercebido da sua qualidade artística. Um projecto que começou em 2011 já teve mais do que oportunidades de provar o seu valor e Dev Hynes nem precisava de ter tido tantas para mostrar o que vale. Antes de ser Blood Orange foi Lightspeed Champion, um projecto que contou com a participação de nomes como Florence Welch, de Florence and the Machine, ou Alex Turner, dos Arctic Monkeys. Antes disso, ainda em Londres, fez parte da banda de dance punk Test Icles.

Estranha mas comicamente, para um músico já mais que estabelecido na cena, continua a usar com regularidade a plataforma SoundCloud e por lá esconde algumas pérolas. Lá perdidos andam um álbum escrito e gravado num dia, nunca lançado oficialmente, ou um EP de covers de músicas dos Green Day. Há uma colectânea de remixes feitos por si há cinco anos, de canções dos Phoenix, por exemplo, Kindness ou Marina And The Diamonds.

Já escreveu, tocou ou produziu para artistas como Tinashe, Solange, Sky Ferreira, FKA Twigs, Haim, Florence and the Machine, Carly Rae Jepsen, Theophilus London, Britney Spears, The Chemical Brothers, Kylie Minogue, A$AP Rocky, Mac Miller, Tyler, The Creator, Blondie ou Mariah Carey. E se o name-dropping pode ser de alguma forma representativo do seu génio, o que é este vídeo?

Dev vê música

Dev Hynes tem sinestesia – tal como Kanye West, Stevie Wonder, Pharrell Williams, Duke Ellington, Mary J. Blige ou Charli XCX. O que significa é que estes artistas vêem música. A sinestesia é um fenómeno de desfoque sensorial que faz com que quem o experiencia veja cores ao ouvir música, tal como o contrário, associe sons e notas a determinadas cores quando as vê. Bem podemos tentar, mas para todos nós, melómanos casuais não afetados pela sinestesia, é difícil visualizar o que isso implica. Ainda assim, Hynes é especialmente talentoso a explicar de que se trata. No vídeo acima, numa TED Talk, ou aqui, por exemplo. Em ambos percebemos que visualiza música de uma forma no mínimo especial. E, no limite, talvez a sua sinestesia tenha influência em toda a componente estética da sua carreira, a forma como conceptualiza os seus álbuns visualmente e os transpõe em videoclipes fortes como os que marcam o seu trabalho, muitos até realizados pelo próprio.

Óbvio que ter uma condição sensorial que a maioria de nós não consegue sequer imaginar o que é, ajuda a elevar todos aqueles que a têm ao patamar de génio. Aqueles músicos que não compreendemos a 100% acabam sempre por ser os mais impressionantes. Os que tomam decisões que não sabemos explicar, os mais misteriosos, aqueles de quem nunca sabemos o que esperar. Até podemos não ser os maiores fãs do seu som, mas sabemos sempre reconhecer quando são extraordinários (literalmente). “Não existe um grande génio sem uma pitada de loucura”, disse alguém sábio. E se nós não os compreendermos mas mesmo assim eles parecerem compreender-nos a nós, e conseguirem com o trabalho que fazem dizer o que sentimos, isso então é de outro mundo.

E Angel’s Pulse?

E por esta altura já estabelecemos que Hynes é um músico raro. Uma metamorfose musical que nasceu no clássico, já foi punk, folk-pop e é o Rei estabelecido de uma espécie de synth pop. Essa metamorfose estende-se ao apoio que dá aos músicos com quem trabalha, independentemente do seu género. Com Blood Orange, Hynes é tipo um maestro capaz de fazer música intensamente pessoal, mas não sem a ajuda dos seus amigos. Um álbum seu nunca é um álbum só seu, nem precisa da ribalta para mostrar a sua arte, dando muitas, mesmo muitas vezes o palco a outros vocalistas para protagonizarem os seus arranjos. Negro Swan está recheado com mais de 30 participações especiais e a narração entre faixas da activista, escritora e realizadora transsexual da série Pose, Janet Mock, que nunca tinha feito spoken word, nunca tinha trabalhado em música e, numa entrevista à Dazed, resume perfeitamente o que é trabalhar com o músico: “Com o Dev, estas coisas simplesmente acontecem, está inerente a ele. Ele é um artista, ele é um escritor, ele é negro, ele tem uma visão queer do mundo. Ele embalou, acompanhou e ajudou artistas femininas como Tinashe e Solange. Eu acho que há uma novidade que se sobrepõe a esse nível de vulnerabilidade e abertura. Há uma facilidade nele…” [tradução livre]

Capa de Angel’s Pulse (imagem via iTunes)

O mais recente Angel’s Pulse, que para o artista é uma mixtape – não um álbum – que serve como “epílogo” de Negro Swan, tem 14 faixas e traz contribuições de Arca, Kelsey Lu, Joba dos BROCKHAMPTON, Tinashe, Justine Skye, Toro Y Moi ou Ian Isiah. É um trabalho um pouco mais flexível e descontraído do que grande parte da música que lançou até agora como Blood Orange. Angel’s Pulse actua como uma espécie de demo de todos os sons e estilos que o músico aprendeu a dominar ao longo de vários anos de colaborações. Não é tão coesa como o seu último álbum – provavelmente vem daí a distinção em que insiste –; pode até soar meio confusa como um todo, mas é hipnotizante. As suas canções não têm um género especifico, é como se preenchessem as falhas que existem entre géneros, ocupando-as, do rap de Houston ao funk. Faz sentido, porque em todas as suas colaborações é esse o papel que desempenha: reúne mundos diferentes numa estética e com uma musicalidade fascinante e misteriosa. 

E ainda que seja um trabalho menos pensado, como o próprio admitiu em várias entrevistas, Angel’s Pulse apresenta-se como um bom resumo da linhagem de influências de Hynes. As causas que apoia, e que tanto marcaram Black Swan, continuam a ferver – veja-se por exemplo “Birmingham”, um tributo ao atentado de 1963 a uma Igreja Baptista na cidade com o mesmo nome, no Alabama, levado a cabo por supremacistas brancos. Há também, obviamente, a sua já conhecida subtileza e persistência no que é queer, ou estranho, na sua tradução primária.

Onde Negro Swan foi enorme, Angel’s Pulse persegue-o, isolado. Mesmo que mais folgado de intenção, Angel’s Pulse tem todo o charme e atenção cuidadosa aos detalhes das duas últimas Magnum Opuses de Blood Orange. Embora não tenha uma mensagem central, marca mais um passo no universo musical que o cantor e o produtor vem formando há anos. Mais importante, ajuda a cimentar Hynes como a potência criativa que sempre foi. Um músico que pinta um mundo inteiro com vozes melodiosas, sintetizadores brilhantes e letras com significado.

Angel’s Pulse é também a melhor forma de terminar este artigo, que poderia ser escrito para sempre e continuará com o lançamento de Fields. À falta constante de palavras, é uma boa conclusão, das que fala por si.

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  • Rita Pinto

    A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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