Este país não é para mulheres

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Ilustração de Catarina Leal

Este país não é para mulheres

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Dos tribunais às ruas e ao lar, são cada vez mais gritantes as agressões machistas do dia-a-dia. Num país onde juízes vêm adultério como atenuante para violência, e uma violação como um "ambiente de sedução mútua", levantam-se as vozes pelas que já cá não estão.

Foram perto de cinco mil pessoas que se juntaram numa enorme manifestação a várias vozes, pelas mulheres, e contra o machismo e a violência. A 8 de Março, a multidão correu as ruas da cidade do Porto gritando “eu vou passar, sou feminista e o mundo vou mudar”. Mas entre cantigas animadas pelas gaitas-de-foles e brados de raiva a pleno pulmão, faltaram as vozes das que já cá não estão.

Neste ano de 2019 já são pelo menos catorze as mulheres que se contabilizam como vítimas mortais em contexto de violência doméstica ou na intimidade.

As manifestações que encheram as ruas de Porto, Lisboa, Coimbra, Braga, Faro e Aveiro por conta do Dia Internacional da Mulher assinalavam como principais problemáticas a justiça machista e a violência contra as mulheres. A memória de Marielle Franco também esteve extremamente presente entre cartazes e palavras de ordem.

Lê-se no relatório de 2018 do Observatório de Mulheres Assassinadas (OMA) que “quanto ao homicídio das mulheres (femicídio), estas são assassinadas, na sua esmagadora maioria, em suas casas (espaço privado), nas relações de intimidade presente ou passada, ou seja, por pessoas suas conhecidas e com quem mantêm ou mantiveram uma relação íntima”.

Os dados do OMA davam conta de 27 mulheres assassinadas no ano passado, assinalando um claro aumento entre 2017 (20 vítimas de femícidio) e 2018. Nos primeiros quatro meses do ano, já eram pelo menos catorze as mulheres mortas às mãos de companheiros e ex-companheiros, em contexto de intimidade, o que poderá indicar uma tendência para o agravamento deste fenómeno.

Fenómeno esse que, sendo assustador, não surge isolado. Os últimos meses têm sido marcados pela discussão na praça pública de episódios de violência contra as mulheres que vão desde a violência sexual até ao aligeiramento de penas atribuídas a agressores condenados.

Vida privada com dois pesos e duas medidas

Recuamos a 11 de Outubro de 2017. É publicado pelo Tribunal da Relação do Porto o acórdão que, mais tarde, fica conhecido como o ‘acórdão da mulher adúltera’, assinado pelo juiz desembargador Neto de Moura e pela juíza Maria Luísa Arantes.

Depois de julgados e condenados a penas suspensas e multa dois homens pelos crimes de sequestro, violência doméstica e posse de arma ilegal (entre outros), pelo Tribunal de Felgueiras, o Ministério Público recorre da sentença, apenas para que o Tribunal da Relação viesse confirmá-la. Lê-se no acórdão assinado por Neto de Moura: “a tese da senhora magistrada recorrente é a de que, tendo decorrido mais de quatro meses sobre a data em que o arguido X teve conhecimento do adultério da mulher, já ele não poderia estar ‘condicionado ou manietado e toldado por sentimentos de revolta e ciúmes, devido à traição’, antes agiu com total discernimento, planeando e premeditando a sua vingança”.

O caso remonta a 2015, quando uma mulher é sequestrada pelo ex-amante por forma a que o seu ex-marido a encontrasse e agredisse com uma moca de pregos, quatro meses após a separação do segundo. Para lá da brutalidade das agressões, extensamente descritas no acórdão e dadas como provadas, o próprio juiz desembargador que assina este polémico documento reconhece os dilacerantes resultados deste episódio na vida íntima e pessoal da mulher agredida.

Ao descrever a vítima como “uma pessoa saudável, alegre e que gostava de conviver com os amigos” até ao evento da agressão, assinalando um posterior “comportamento triste, introvertido, deixando de conversar normalmente” e que evitava “frequentar locais de convívio social”, o redactor reconhece o trauma e sofrimento infligidos à mulher.

E, ainda assim, este mesmo juiz rebate os argumentos apontados pela magistrada recorrente da condenação do Tribunal de Felgueiras, quando escreve que “não partilhamos da opinião da digna magistrada recorrente sobre a gravidade dos factos nem sobre a culpa dos arguidos”, acrescentando que o caso em questão “está longe de ter a gravidade com que, geralmente, se apresentam os casos de maus-tratos no quadro da violência doméstica” e que “a conduta do arguido ocorreu num contexto de adultério praticado pela assistente”.

Enquanto que o juiz desembargador e a sua co-assinante reconhecem o trauma provocado pelos agressores a esta mulher, também se apoiam no internamento por depressão a que o ex-marido foi sujeito para justificarem o seu mal-estar psicológico, que atribuem ao adultério da agredida.

Não bastando uma primeira condenação com pena suspensa, o juiz do Tribunal da Relação do Porto reitera que o comportamento da vítima é censurável, e que “sociedades há em que a mulher adúltera é alvo de lapidação até à morte”.

Como podemos ler na entrevista feita a Laura Segato, nesta mesma edição do Jornal Mapa, “então como a sociedade aprende o que é um crime, o juiz aí é um professor e um pedagogo, alguém que tem de dizer mas tem de dizer da forma certa”. Segundo a antropóloga, um juiz não pode tão simplesmente descartar-se da sua função de pedagogo na sociedade e escudar-se com argumentos legalistas.

Mais ainda quando este mesmo juiz, apenas ano e meio após a assinatura deste acórdão, que tanta polémica gerou e resultou numa advertência do Conselho Superior de Magistratura, assina novo acórdão em que liberta da pulseira electrónica um agressor condenado. Argumentava Neto de Moura no acórdão que, nos dias que correm, o fenómeno da violência doméstica é de tal forma empolado que “a mais banal discussão ou desavença entre marido/companheiro/namorado e mulher/companheira/namorada é logo considerada violência doméstica e o suposto agressor (geralmente, o marido ou companheiro) é diabolizado e nenhum crédito pode ser-lhe reconhecido”.

Na descrição dos factos provados, o juiz escreve que desde 2013 o arguido agredia verbalmente a esposa, até ao culminar de ameaças com armas de fogo e um episódio de violência física que acabou por resultar na perfuração do tímpano da esposa.

Ora, após recurso apresentado pelo arguido, o juiz Neto de Moura entende que a ordem de distanciamento de três anos é demasiado longa e não encontra necessidade da aplicação da pena acessória – a utilização da pulseira electrónica – já que o arguido terá cumprido “escrupulosamente” a ordem de distanciamento e a obrigação de reinserção social que passasse pela desintoxicação de álcool. Manteve a condenação de prisão com pena suspensa por dois anos e oito meses.

Nestes dois acórdãos redigidos e assinados por Neto de Moura, entende-se que há dois pesos e duas medidas na interpretação do que pode ou não ser visto como devassa da vida privada. Se no que respeita à vida da mulher agredida pelo ex-amante e ex-marido, a sua vida íntima não foi factor a considerar na manutenção da suspensão da pena dos seus agressores, e inclusive é invocado o “gravíssimo atentado à honra e à dignidade” do ex-marido pelo adultério por ela cometido, o mesmo não se pode verificar no sentido inverso. Porque o homem que tanto soqueou a esposa ao ponto de lhe rebentar o tímpano estava sob vigilância electrónica contra sua vontade, considerou o juiz Neto de Moura, isso era uma violação do seu espaço privado e da sua vida íntima e, portanto, esta pena acessória era excessiva.

Ilustração de Catarina Leal

“Dançar não é seduzir”

Tão somente um ano depois de rebentar a polémica do ‘acórdão das mulheres adúlteras’, como acabou por ficar conhecido, vem a público novo acórdão que expõe a ferida da misoginia da justiça portuguesa.

Em Novembro de 2016, uma jovem é violada por dois funcionários de uma discoteca de Vila Nova de Gaia. Aproveitando o estado de inconsciência dela, os dois homens agrediram-na sexualmente na casa-de-banho da dita discoteca.

Após serem condenados em primeira instância a quatro anos e meio de prisão com pena suspensa, o Ministério Público de novo recorre para o Tribunal da Relação do Porto para pedir uma condenação efectiva, que uma vez mais confirma as penas atribuídas aos agressores. Para evitar plasmar a violência descrita nos factos provados daquele julgamento, saibam os nossos leitores que o acórdão está integralmente disponível online (Processo 3897/16.9JAPRT.P1).

Nas conclusões do acórdão do Tribunal da Relação do Porto lê-se que ao não terem “qualquer percurso criminal” e como “não há danos físicos (ou são diminutos) nem violência (o abuso da inconsciência faz parte do tipo)”, a culpa dos arguidos situar-se-ia “na mediania”.

Mas se no caso de Neto de Moura houve um levantamento de inquérito e uma reprimenda determinada pelo Conselho Superior de Magistratura, no caso do acórdão da “sedução mútua”, assinado por Maria Dolores da Silva e Sousa e Manuel Soares, não houve qualquer tipo de questionamento por parte do Conselho acerca dos posicionamentos e afirmações dos juízes.

Na sequência da divulgação deste caso e deste acórdão do Tribunal, junta-se no Porto uma manifestação de perto de 500 pessoas, onde se levantam cartazes e vozes. Ouve-se e lê-se “Juízes machistas, ide ver se chove, não queremos voltar ao século XIX”.

As mãos das e dos manifestantes estão tingidas de vermelho, e um pouco por todo o lado lê-se “#MeToo”. Nos peitos e nos cartazes levam-se palavras de ordem, que, queixavam-se as manifestantes, têm sido demasiadas vezes necessárias. O consenso geral entre quem se manifestava era que o Ministério Público deveria reforçar formações e sensibilizações nos casos de violência sexual, e que o governo deveria incitar a um debate público sobre este fenómeno.

Se, por um lado, temos episódios em que os agressores são de facto considerados culpados de actos de violência doméstica e sexual mas as penas que lhes são atribuídas são na forma suspensa, por outro lado temos o caso de Aliesky Aguillera. Este médico condenado a seis anos de prisão por cinco crimes de violação enquanto exercia a profissão nos Açores continuava, em Março, a exercer medicina num hospital lisboeta. E, não obstante a condenação pelo tribunal de primeira instância, a juíza optou por não aplicar interdição de exercício de profissão, já que isso seria da competência da Ordem dos Médicos. Até Março deste ano, nem a Ordem se havia pronunciado, nem haveria sido emitido mandado de detenção.

Ilustração de Catarina Leal

“Não estamos todas, faltam as mortas”

Em Abril de 2019 já não bastam duas mãos para contar os nomes das mulheres mortas pelos seus parceiros ou ex-parceiros íntimos. Mas quando em Fevereiro se contavam ainda dez, um grupo de manifestantes desceu do Bolhão, no Porto, até ao Tribunal da Relação, invocando os nomes e a memória das mulheres assassinadas. Eram perto de 150 pessoas e gritavam “parem de nos matar”.

Entre as árvores do Jardim da Cordoaria estendeu-se uma corda com dez camisolas brancas, sujas de sangue e terra. O que é habitual neste tipo de manifestações é que se peça um minuto de silêncio em memória das vítimas. Pelo contrário, estas 150 manifestantes gritaram a pleno pulmão “vivas nos queremos, nem uma menos”.

Marta era parte integrante desta e de outras manifestações, um rosto afogueado já familiar destas andanças. E dizia “o que precisamos é de fazer ruído, não de nos calarmos”.

Mas o cenário continuou a agravar-se. Até ao dia da Greve Internacional Feminista, no dia 8 de Março, foram mais duas as mulheres assassinadas. E à data de fecho desta edição do Jornal Mapa, outras duas.

No dia 8 de Março foram milhares as que acudiram às ruas e à solidariedade entre feministas, amigas, colectivos, projectos políticos, para gritar não somente pelo direito à igualdade, mas pelo direito à liberdade e à vida com dignidade. Se na manifestação de Outubro de 2018, aquando do ‘acórdão da sedução mútua’, foram muitos os braços e vozes que se ergueram, em Março de 2019 foram mais ainda.

A Greve Internacional Feminista em Portugal foi em grande parte mobilizada pela Rede 8 de Março, e contou com o apoio de cinco sindicatos nacionais – o SNESUP, o STCC, o SIEAP, o STSSSS, e o STOP. A Rede invocava a necessidade de uma greve que se estendesse para lá da sua tradicional acepção, que se refere à greve laboral. Apelando à greve ao trabalho doméstico e emocional, era objectivo da Greve levantar questões sobre os moldes em que a sociedade assenta. Desde a precariedade laboral às violências nas suas múltiplas formas, à justiça machista e aos femicídios em escalada, à homolesbobitransfobia, havia espaço para todas as causas na bandeira da Greve Feminista.

Estudantes, mães, amigos, colectivos feministas mais ou menos institucionais, os Ritmos de Resistência a pautar o ritmo, trabalhadoras, desempregadas. As histórias que se ouviam pelas fileiras da manifestação eram em muitos pontos diferentes, mas em muitos outros coincidiam. As conversas frequentemente iam bater à discussão sobre a justiça e os tribunais, sobre a permissividade das instituições para com a violência contra a mulher. Mais do que uma vez se ouviu falar sobre Neto de Moura, sobre o «acórdão da sedução mútua» e sobre as então doze mulheres assassinadas.

A memória da vereadora Marielle Franco esteve presente em palavras de ordem e t-shirts, assim como a de todas as mulheres portuguesas assassinadas pelos seus companheiros e ex-companheiros.

No final da manifestação uma mulher brasileira gritava “Marielle!” para que as demais manifestantes respondessem “Presente!”. “Hoje!”, gritava ela, “e sempre!”, respondiam elas. Uma jovem chorava copiosamente, lágrimas mais velozes que as mãos que as limpavam.

Eram muitas, mas faltavam as mortas. As presas. As precárias. As traumatizadas. Eram muitas as sobreviventes, e muitas as vítimas.

Estas são apenas algumas das histórias que conseguem chegar a público. Muitas mais serão as que se calam nos Tribunais e no silêncio das casas. São muitas as mulheres e a luta feminista continua a ganhar alento, mas certo é que, entre maus-tratos, assédio e femicídios, e até mais ver, este país não é para mulheres.

Texto de Zita Moura

(Nota: este texto foi originalmente publicado no Jornal Mapa, jornal de informação crítica, editado em papel, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)

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