O 31 de Downing Street

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A Downing Street é onde vive e trabalha a Primeira-Ministra britânica (foto de Garry Knight via Flickr/Wikimedia)

O 31 de Downing Street

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Quanto mais se arrasta este impasse, maior será a descrença no poder político e na diplomacia. Perderá sempre o cidadão comum, o eleitor, que deseja com toda a justiça prosseguir a sua vida e alhear-se deste enredo queirosiano.

“You might very well think that; I couldn’t possibly comment”. Francis Urquhart, personagem da obra literária de Michael Dobbs convertida em série de televisão, denominada House of Cards, invariavelmente recorria ao icónico jargão, o qual funcionava como escudo e subterfúgio perante questões mais incómodas ou sobre as quais se esperava um rebate clarividente, uma tomada de posição que o vinculasse a um qualquer posicionamento estratégico. No fundo, um escape, permitindo-lhe sair “ileso” do vendaval mediático, resguardar-se estrategicamente deixando pairar um certo suspense enigmático, mas, sobretudo, reservar para si a verdadeira crença, longe dos holofotes e da pressão.

Em oposição ao seu nativo fictício, o Reino Unido já não exterioriza uma imagem de solidez e convicção, imperando o desnorte no seu âmago: o Brexit entrou numa espiral recessiva, com sucessivos pactos negociados com a União Europeia e recorrentemente carimbados com o chumbo da House of Commons, algo que revela o estado de espírito vigente.

Por muito boas que sejam as intenções de Theresa May ao negociar apressadamente um acordo político com a UE que salvaguarde os interesses dos britânicos (máxime a questão alusiva ao mercado único, a circulação dos britânicos no reduto da União Europeia e a permanência dos cidadãos da UE em solo britânico), os repetidos falhanços aliados à recente cedência a Jeremy Corbyn e ao Labour Party mostram sinais de fraqueza e descontrolo.

Numa recente sondagem da YouGov, os britânicos mostravam que, se até ao dia 12 de Abril não houvesse acordo, negociado com a UE e aprovado no Parlamento, prefeririam um no deal a uma extensão do prazo. No fundo, não sendo a opinião de grande parte dos media e comentadores políticos que se debruçam sobre o tema, é o estado de espírito de quem efetivamente deseja uma solução expedita, com ou sem acordo, e sente na pele os efeitos deste óbice, que desgasta e que, perpetuando-se, despoletará efeitos irreversíveis na (des)crença do cidadão em todo o sistema político.

Vem isto a propósito da extensão recentemente concedida pelo Conselho Europeu para a consumação do Brexit – 31 de Outubro. Curiosamente, Macron mostrou, na nossa ótica, a lucidez e temperança que se lhe escapavam há algum tempo, desde o “Renascimento”, invocando a incúria do processo e alertando para as implicações negativas para a solidez do projeto europeu que um prolongamento potencialmente incessante traria.

Não se vislumbrando um desfecho favorável às pretensões de ambas as partes, prevê-se mais uma ronda negocial com irredutibilidade bifurcada: cada um jogará a favor dos seus interesses, sendo certo que do lado do Reino Unido prevalece a utópica conceção de “meio pé dentro, um pé fora”, fazendo-se sempre valer do seu douto estatuto histórico de Grande Império; do lado da União Europeia, a firmeza e intransigência para reforçar a robustez do projeto europeu e um sinal para futuros “dissidentes”.

Sejamos intelectualmente honestos: é evidente que o cenário ideal seria a consumação do Brexit com um acordo político entre Reino Unido e UE, com salvaguarda dos interesses dos britânicos, mas também dos cidadãos da União Europeia. E é, acima de tudo, o desejável, tão célere quanto possível, inclusive. Porém, a esta altura, representa um cenário que nos parece mais idílico que palpável.

Quanto mais se arrasta este impasse, maior será a descrença no poder político e na diplomacia. Perderá sempre o cidadão comum, o eleitor, que deseja com toda a justiça prosseguir a sua vida e alhear-se deste enredo queirosiano. Não será, por isso, descabida a previsão de um no deal com negociações à margem, essencialmente, numa base de novos acordos de comércio (uma nova união aduaneira e alfandegária, à semelhança de Suíça e Liechtenstein), uma solução para a livre circulação dos cidadãos britânicos no espaço europeu, assim como, internamente, a flexibilização no acesso e permanência em território britânico. O que virá a seguir?

Resta-nos, com tudo isto, fazer uso do jargão inicial – “You might very well think that; I couldn’t possibly comment”.

Texto de José Paulo Miler

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