Vasya Run: os russos que passaram por Portugal na busca por quem são

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Vasya Run: os russos que passaram por Portugal na busca por quem são

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São seis, russos, habitantes das periferias de Moscovo e que preferem trocar as identidades pessoais pelo impacto do mistério de serem reconhecidos como um grupo de anónimos. Vieram até Portugal, a convite da BoCA.

São seis, russos, habitantes das periferias de Moscovo e que preferem trocar as identidades pessoais pelo impacto do mistério de serem reconhecidos como um grupo de anónimos. Vieram até Portugal, a convite da BoCA – ou Biennal of Contemporary Arts, com uma performance também ela misteriosa. If You Want To Continue foi apresentada em Lisboa e no Porto, e apenas antecipada pelo pequeno texto do prospecto que não dava grandes pistas sobre o que se iria ver. Uma pesquisa aprofundada revelava o grupo debaixo de olho de revistas de referência como a alemã 032c. O artigo em questão remonta há cinco anos; ainda assim serviu para situar a perfomance e criar a expectativa necessária para nos levar, neste caso, até à Sala dos Geradores do MAAT.

Ao entrar na sala, a disposição das cadeiras, em formato quadrado mas com cada aresta composta por um triângulo de cadeiras em direcção ao centro, e os holofotes nos cantos davam as primeiras pistas sobre aquilo a que se ia assistir, reforçando a ideia que surgia no texto da 032c de que o exercício seria imersivo e intenso. Passaram-se alguns minutos desde a hora marcada, os suficientes para as cadeiras ficarem completamente preenchidas, quando no backstage se começavam a vislumbrar as primeiras sombras. Os seis performers entraram em cena logo de seguida, dispondo-se perto das cadeiras e de frente para o público.

Os primeiros momentos foram de concentração; simultaneamente iam levantando as suas mãos numa espécie de ritual meditativo e quase perfeitamente sincronizado, ainda que os artistas não se conseguissem ver. A partir daí, a performance evoluiu para uma toada mais teatral e introspectiva. Cada elemento do grupo ia à vez dizendo uma frase que era sendo repetida pelos outros, enquanto se movimentavam no espaço através de movimentos que pareciam tanto coreografados como aleatórios. A repetição das frases nos vários tons e a exploração circular do espaço passava a ideia da deambulação, como se tudo se resumisse a um pensamento que repetimos vezes sem fim dentro da nossa cabeça, enquanto andamos às voltas praticamente no mesmo sítio – não fosse esta criação resultado do tempo que o graffiter russo Vasya passou preso em França.

É a partir da interpretação do texto que Vasya escreveu no cárcere que o grupo desenvolveu a performance. No substrato desta, está uma complexa linguagem simbólica que os performers vão interpretando para criar o seu significado e que os espectadores podem decifrar com ajuda da folha de sala. Tudo se baseia na teoria do filosófo e místico George Gurdjieff e nos ensinamentos que este descreve para uma consciência unificada conhecida como o Quarto Caminho; a tese de Grudjieff é a de que os homens não têm uma experiência humana plena mas que podem alcançá-la através de uma série de rituais, gestos e frases; em palco é isso que o grupo faz: coreografias sem um sentido aparente que parecem uma espiral em direcção ao âmago de cada um.

Saltos simulados, sem tirar os pés do chão, alongamentos repetitivos como a rotação dos braços caídos ao longo do corpo e, claro está, as mesmas frases repetidas uma e outra e outra vez. Isto tudo parecia aproximar os participantes de um estado cada vez mais espiritual até que, no aparente final, os seis surpreendem o público numa mudança de 180º. Surgem, então, com microfones na mão e uma atitude provocatória a cantar rap em russo, como se fosse para isso que lá estavam. Sem tirar as bandanas que lhes cobria a identidade, saltavam, cantavam ao despique entre si e metiam-se quem no público revelasse uma maior expressão de choque.

A performance foi misteriosa, quase críptica, e por isso quisemos saber mais sobre os artistas que a preparam. Assim, sem mais nem menos, metemos conversa pelo Instagram para saber mais sobre o grupo, os seus objectivos e as suas motivações. O principal destaque dado pelo grupo é o carácter pessoal e de auto-descoberta inerente a esta performance. Ficámos a saber também que o processo de construção do que é apresentado se estende por outros exercícios específicos para cada um, vistos como trabalho interno, que passa despercebido mas é indispensável. Originários dos subúrbios de Moscovo, dizem que é nessa sub-cultura que os artistas se inspiram, especialmente por terem nascido nos anos 1990, altura em que a cultura ocidental começou a chegar à Rússia.

Pelo carácter disruptivo da sua apresentação, e pelos preconceitos que as histórias vão criando, tivemos também curiosidade de saber a sua relação com as autoridades russas e se sentiam algum tipo de opressão. O grupo não escondeu que ela existe, fazendo, contudo, a ressalva para o facto de não chegar tanto ao universo da arte contemporânea por ser uma disciplina elitista. De qualquer forma, sublinham o facto de não abordarem nada político, a não ser o tema da auto-descoberta que lhes é muito caro. Apesar disso, e pela sua composição secreta mas que inclui alguns elementos em situação delicada, o grupo confessa que chegou a decidir não actuar na Rússia, algo que se tornou mais flexível com os diversos convites de pessoas que foram porreiras para eles.

Quanto à composição do misterioso grupo, não nos disseram se são apenas os seis que sobem ao palco ou uma grupo que se multiplica e desmultiplica consoante as necessidades do espaço e as vontades do grupo. Quanto aos seis que estiverem em palco em Lisboa, pelo menos um deles era skater, outro era um bailarino de break, havia um músico e também um rapper; um grupo diferente daquele que protagonizara a primeira performance o Museum of Contemporary Art, onde o graffiti assumia um papel mais central.

Por último, quisemos saber como se vêm enquanto marginais ao actuar num espaço e em eventos de um circuito tão restrito e – como os próprios disseram numa das anteriores respostas – elitista. Respondem-nos que por mais estranho que pareça encaixaram no universo da arte contemporânea e que, portanto, o espaço do museu é, com todos os contrastes, o sítio mais adequado à sua perfomance.

Reunindo todos os dados é possível perceber que para além das fronteiras da performance este projecto de arte contemporânea tem um fim em si próprio, independente das apresentações que vão sendo um pouco por todo o mundo. O mais importante para este grupo de jovens artistas parece ser criar e cultivar um espaço distante dos preconceitos normativos, da agitação frenética, da efemeridade digital, que por acaso partilham com o público sempre que são convidados a fazê-lo.

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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