Sem fronteiras: uma reflexão artística sobre resíduos e energia renovável

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"Over Flow" – MAAT, Lisboa (foto Rita Avó Baião/Shifter)

Sem fronteiras: uma reflexão artística sobre resíduos e energia renovável

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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No MAAT, em Lisboa, dois artistas, Tomás Saraceno primeiro em 2018 e depois Tadashi Kawamata actualmente em exibição, fazem o visitante reflectir numa experiência que transpõe as paredes da galeria do museu.

É uma verdade universalmente sabida que a arte é indissociável do seu contexto histórico, havendo temas longitudinais à história como o Amor, a Guerra e a Natureza. Os artistas acabam por ser esponjas dos contextos sociais, culturais e políticos que os envolvem, inevitavelmente transpondo muito do seu ambiente para as suas obras.

O presságio do fim do mundo, com maior ou menor urgência, é um tema comum à arte plástica convencional: dos frescos d’O Juízo Final de Michelangelo, ao tríptico com o mesmo nome de Hyeronimus Bosch até Pandæmonium (Paradise Lost) de John Martin.  Ao mesmo tempo com o aumento dos movimentos migratórios desde a Segunda Guerra Mundial, a constituição do espaço Schengen Europeu até à queda do muro de Berlim, é inevitável que as travessias de fronteiras tenham ganho destaque no meio artístico por condicionarem, inclusive, o percurso dos seus autores.

“14000 Newtons” – Pedro Pires, POLDRA 2018, Viseu
“The Opte Project” – Barrett Lyon

No MAAT, em Lisboa, dois artistas, Tomás Saraceno primeiro em 2018 e depois Tadashi Kawamata actualmente em exibição, transportaram as preocupações face às alterações climáticas e energias “limpas”, e as questões relacionadas com a gestão de plásticos e resíduos para os seus trabalhos, fazendo o visitante reflectir numa experiência que transpõe as paredes da galeria do museu.

Em Over Flow, Tadashi Kawamata aborda a catástrofe ecológica e como os resíduos circulam nos oceanos, sem fronteiras. Na preparação para este trabalho site-specific, em exposição na galeria Oval do MAAT, Kawamata foi confrontado com detritos resgatados da costa portuguesa pela organização voluntária Brigada do Mar durante 2018, sendo estes detritos provenientes de diversos continentes. Entre garrafas de água de plástico, caixas de isopor e bidões de derivados petrolíferos, encontramos dois barcos, um a afundar-se e outro já “submerso”, num espaço das sombras do que seria um ecossistema marítimo rico de espécies animais e algas.

“Over Flow” – MAAT, Lisboa (foto Rita Avó Baião/Shifter)
“Over Flow” – MAAT, Lisboa (foto Rita Avó Baião/Shifter)

Pedro Gadanho (curador desta exposição em conjunto com Marta Jecu), convida-nos mergulhar em Over Flow, em que Kawamata “revisitou as tradições artísticas japonesas e obras como A Grande Onda ao Largo de Kanagawa de Katsushika Hokusai”. Mas, em oposição à obra de Hokusai, em que os barcos de pescadores são ameaçados por uma onda gigante, é a “onda de detritos” que ameaça o oceano e o seu ecossistema, num ambiente imersivo, como é habitual no trabalho do artista. Ao mergulharmos por baixo da onda plástica, olhamos de perto e vemos rótulos, de vários países, com palavras de línguas desconhecidas, onde a água salgada deixou a sua marca. Estes plásticos e resíduos não têm, pois, nação e fazem parte da Água, como se fossem um elemento em si mesmo.

A Passarola de Bartolomeu de Gusmão, 1709 – gravura via Torre do Tombo
Esboço da Passarola por José Saramago (imagem via Fundação José Saramago)

Meses antes, em 2018 no mesmo museu, Tomás Saraceno, artista argentino, através das suas esculturas flutuantes propõe ao visitante a exploração do poder da interacção humana com outros três dos elementos: o Sol, o Ar e a Terra. A concepção de um meio de transporte aéreo – através de balões de ar quente sem fonte de propano ou hélio, bicicletas e outros materiais não dependentes de combustíveis fósseis – recorda-nos a Passarola de Saramago inspirada no aeróstato de Bartolomeu de Gusmão.

Este meio de transporte aerodinâmico feito pela colaboração humana com o meio envolvente, num espírito de Do It Together, materializa-se no Aerocene Explorer.

Com este “balão de ar”, que recorre a um Previsor de Flutuação realizado em conjunto com o MIT, nos EUA, e prevê as correntes de ar frio e quente que permitem a deslocação de massas mais pesadas que o ar, Tomás Saraceno e o movimento de aeronautas a que pertence, quebraram o recorde do mundo de viagem aérea realizada pelo homem, em que sete passageiros “flutuaram” durante duas horas e cinquenta e cinco minutos, sem recorrer a hélio, propano, turbinas ou painéis fotovoltaicos.

Eclipse of the Aerocene Explorer, 2016. Performance no Salar de Uyuni, Bolívia, Janeiro de 2016 (foto de Tomás Saraceno)

Desta forma, a interacção do Homo sapiens (ou Homo economicus, como é apelidado no seu manifesto) com os elementos, através do movimento de correntes de ar, diferenças de temperatura promovidas pela radiações solar e infra-vermelhas emitidas pela terra, é exaltada como o próximo paradigma no desenvolvimento da humanidade, numa economia pós-combustíveis fósseis: o passar da era Antropocêntrica para o Aeroceno.

“ON AIR” – Tomás Saraceno no Palais de Tokyo, Paris (foto de Madalena Rodrigues)
“ON AIR” – Tomás Saraceno no Palais de Tokyo, Paris (foto de Madalena Rodrigues)

Os “aeronautas” do projecto Aerocene sonham uma era em que a atmosfera ganha outro relevo, não só pela dimensão espacial que ocupa, mas pelas novas formas de olhar o movimento: um espaço actualmente dominado pela aviação e satélites, à custa de fontes emissoras de carbono, é apresentado como ideal para uma locomoção com rotas completamente díspares de qualquer outro animal aéreo, um movimento sem fronteiras ou soberanias, longe do olhar corporativo ou governamental.

Este domínio, dependente de condições climatéricas e fluxos atmosféricos, poderá potenciar novos cenários geopolíticos. Potencialmente, no Aeroceno, existirão novos países, novas fronteiras desenhadas consoante as correntes de vento, anticiclones e massas de ar. Também em Over Flow, resíduos, recursos e matérias primas circulam ao sabor de outras correntes, desta feita oceânicas, também sem controlo, e convidam-nos a pensar a forma como legislamos ou fazemos lobby industrial: reconhecendo que as consequências de uma economia linear fogem às alfândegas ou a linhas fronteiriças e que a gestão de resíduos não pode ser feita apenas através de leis domésticas restritas; vendo que este problema deve ser abordado sem fronteiras por ser, justamente, global.

Num ambiente de grande fluxos migratórios, potenciados por viagens aéreas low cost, ou fluxos de refugiados ao largo do Mediterrâneo, potenciados por actividades bélicas imperio-capitalistas, nunca os movimentos políticos populistas acenaram tanto o controlo de fronteiras como bandeira eleitoral. Está na hora de repensar no papel de fluxos de movimento, não só de resíduos mas de pessoas que, não só no Mar mas também no Ar, circulando sem fronteiras  podem ser a solução para um desastre iminente na Terra.

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