Roma: um dos filmes obrigatórios de 2018 (e o rei do Netflix)

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Roma: um dos filmes obrigatórios de 2018 (e o rei do Netflix)

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Alfonso Cuarón visita de forma muito pessoal o México dos anos 1970, não para contar a sua história, mas para através do seu olhar e memórias ficcionar a vida de duas mulheres.

As memórias da infância em tempos de instabilidade política têm sido uma forte inspiração para os cineastas um pouco por todo o mundo, com destaque para os sul e centro americanos, que têm colocado em cena filmes que relatam dramaticamente as suas vidas nos anos 1960, 1970 e 1980.

Filmes como Clandestine Childhood ou The Year My Parents Went on Vacation são exemplos disso mesmo, e agora mais a norte no continente, Alfonso Cuarón visita de forma muito pessoal o México dos anos 1970, não para contar a sua história, mas para através do seu olhar e memórias ficcionar a vida de duas mulheres, Sofia (Marina de Tavira), uma mãe de quatro filhos de classe média, e Cleo (Yalitza Aparicio), uma trabalhadora doméstica Misteca.

A vida de ambas está entrelaçada para além da relação patrão-empregado, partilhando as duas um desmoronamento emocional e íntimo que afecta sobremaneira a dinâmica de uma família. É que se uma (Sofia) se vê obrigada a lidar com a ausência do marido, a outra (Cleo) anda “desencontrada” de um “namorado” que desapareceu misteriosamente após uma ida ao cinema. São novamente personagens femininas em alvoroço emocional, não tão diferentes das que vimos em Y Tu Mamá TambiénChildren of Men e até Gravity.

À medida que as suas vidas se complicam cada vez mais e percebem que acima de tudo estão sozinhas para lidar com os seus dilemas e problemas, estas duas mulheres – separadas pela raça e hierarquia social – vão-se aproximando, nunca como semelhantes, mas com um maior sentido de familiaridade, sentindo-se uma verdadeira maior proximidade na relação dos mais pequenos com a sua empregada, transformada em ama e numa segunda “mãe fabricada”.

Há uma sequência na celebração de um fim de ano que demonstra isso mesmo, em que família e empregados se unem para combater um fogo florestal, sempre com a proximidade emocional de um clã, mas sempre com um afastamento hierárquico nos seus papéis sociais e funções. Essa mesma cena serve também para mostrar um México unido, uma mescla de culturas, raças e credos carimbados por disparidades sociais, visíveis igualmente na topografia (extremamente observável quando a família se mete em viagem, ou quando Cleo tenta encontrar o namorado em zonas mais pobres), que invariavelmente culminam em grandes tumultos e confrontos ideológicos, como a batalha campal entre milícias paramilitares apoiadas pelo governo e manifestantes estudantis, que culminaram no massacre de Corpus Cristi, apresentado numa sequência profundamente devastadora.

Cuarón inspirou-se e dedicou esta obra à sua ama (Liboria “Libo” Rodriguez) e o seu sentido para o detalhe em cada sequência, plano e fotograma é inspirador para nos revelar a sua paixão pelo material, o qual navega entre o drama, a comédia (às vezes absurda) e o suspense (na vida pessoal, familiar, social e na política mexicana) com uma fluidez absolutamente melancólica, onde não faltam mesmo toques e referências para além do óbvio neo-realismo, com uma cena numa sala de cinema a levar-nos até ao filme Lost In Space (1969), o qual influenciou Gravity.

Nesse jogo de memórias, referências e nostalgia, numas ruas do México onde até se pode dizer que Cuarón chega a filmar com um olhar “Scorseseano” e brinca com correrias à Godard, a cinematografia e a direcção artística são imaculadamente obras primas per se, com o preto e branco meticuloso a transparecer o seu fascínio habitual pela luz natural e pela aplicação de mais ou menos contraste e saturação em cada frame, carregando o filme permanentemente de uma sensação de infortúnio, mas simultaneamente de  conforto familiar num país em reboliço.

Há ainda o belíssimo sentido do cineasta em navegar entre close-ups, de detalhe e planos gerais, nunca escapando a preciosismos pessoais e históricos (o homem canhão num comício remete ao populismo e ao espectáculo como resposta à pobreza), jogando o mesmo muitas vezes com duplas acções no mesmo plano (o parto, em grande destaque) que acrescentam densidade, profundidade e sentido trágico.

Assim, e adicionando o belíssimo trabalho no som, em termos técnicos Roma é uma verdadeira aula de cinema, uma ode aos pequenos e grandes detalhes, o que somado a uma narrativa delicada, sensível e figuras extremamente humanas e empáticas, onde se destaca uma soberba Yalitza Aparício, fazem dele um dos filmes obrigatórios de 2018.

Texto de Jorge Pereira

(Nota: este texto foi originalmente publicado no c7nema, um dos mais antigos sites de informação, opinião e crítica de cinema em Portugal, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.)

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