Com a evolução da tecnologia, a proliferação de estudos científicos e de projectos de investigação de todos os tipos e níveis de credibilidade e a nova forma de fazer notícias – sobretudo, comentando-as, evitando o cruzamento de perspectivas que saem do escopo do legitimo percebido pelo comentador –, fenómenos sociais de grande magnitude vêem a sua riqueza social reduzida a justificações convenientes que caibam em headlines ou tweets. O caso dos Coletes Amarelos não é excepção; pelo contrário, pode ser visto como paradigmático no sentido em que, por muito que se avolume a revolta e a ela se juntem pessoas de diferentes quadrantes, as explicações propostas pelos especialistas, muitas vezes sujeitos à pressa do directo, são quase sempre simplistas. Não porque ignorem ou desconheçam certas nuances do fenómeno, mas porque se perdeu uma certa noção de profundidade no intelecto dos homens e mulheres. Com a mesma superficialidade e leviandade com que fazemos julgamos nas redes (ah, Liberal! ah, Comuna!), observamos os fenómenos do mundo real e assim explicamos tudo com chavões.
“Os coletes verdes protestam contra o imposto verde logo são liberais a pedir menos impostos.”
“Os coletes verdes são o povo a mostrar que está farto das políticas neo-liberais de Macron.”
Ou em versão Trump:
The Paris Agreement isn’t working out so well for Paris. Protests and riots all over France. People do not want to pay large sums of money, much to third world countries (that are questionably run), in order to maybe protect the environment. Chanting “We Want Trump!” Love France.
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) December 8, 2018
Se é certo que qualquer uma destas simplificações pode, no limite, ser considerada correcta, o problema é que todas elas se limitam a uma lógica dicotómica como se a política se pudesse reduzir aos binários ideológicos que povoam o nosso imaginário. Por exemplo, Trump tem no acordo de Paris uma das suas fixações daí que procure usar todo e qualquer pretexto para validar a sua posição, instrumentalizando a sua participação no debate e aproveitando a falta de objectividade com que se conhecem as reinvindicações dos protestantes. É que se essa diversidade de pontos de vista e motivações para a revolta podia ser entendida como riqueza democrática oferecendo ideias ao debate, no estado actual e no plano global, transforma-se em granada de argumento retórico entre os diferentes grupos. À distância, o conflito torna-se mais difícil de decifrar; mostra-nos uma França que raramente vemos e vozes que raramente ouvimos como a dos camionistas ou, num segundo momento, as dos estudantes universitários que acrescentam camadas à questão.
Afinal de contas, este movimento de protesto que desde o dia 18 de Novembro ocupa estradas e ruas por França e que nas últimas semanas se concentrou em Paris, começou muito antes no espaço comum e um dos que mais partilhamos, o Facebook, como desde então se mantém, sem uma liderança ou concentração expressa, como o resultado de descontentamento generalizado e transversal a várias camadas da sociedade.
É um dos mais expressivos desde o histórico Maio de 68 e, mesmo apesar do lado que nos chega ser sobretudo marcado por confrontos, as sondagens locais mostram a aceitação generalizada do protesto. A percentagem aferida por uma sondagem desceu de 72% para 66%, números ainda assim bastante significativos que indiciam a generalidade do descontentamento. Por toda a França e sobretudo em Paris, as concentrações foram massivas — só no passado sábado calcula-se que tenham manifestado 31 mil pessoas, 8 mil das quais na cidade de Paris; já a resposta do Estado foi altamente repressiva e musculada, com cerca de 89 mil homens espalhados pelo país a compor o dispositivo de segurança. Em resultado dos confrontos entre ambas as partes, centenas de pessoas acabaram detidas ou identificadas, ora por delitos flagrantes ora numa atitude preventiva; foi também esta resposta, em alguns casos aparentemente desproporcional, que espalhada nas redes sociais foi alimentando o protesto, conferindo-lhe simultaneamente um alcance global.
Sérieusement @jmblanquer @CCastaner ???? #Honte et #dégoût pic.twitter.com/GkFNuiWHtn
— Ninuwé Descamps (@NinuweDescamps) December 6, 2018
Ao longo de todo o protesto foram vários os dias de concentração em alguns pontos estratégicos/simbólicos do país — desde o centro de Paris a trechos de estradas nevrálgicos no transporte de mercadorias ou combustível. A organização era difusa mas a revolta era evidente contra um inimigo abstracto e que quase todos definiam de forma diferente. A fúria dos protestos foi seguindo múltiplas direções e, segundo suspeitam as autoridades francesas, a intromissão de grupos organizados no movimento foi o que fez disparar a violência desproporcional de um movimento que até esses momentos tinha absoluta legitimidade — como se perceba pela resposta estatal. A violência aumentou a dramatização do assunto, em oposição à racionalidade que a política exige, e assim tirou espaço a quem saiu à rua de modo pacífico para se fazer ouvir. De resto foi o próprio Emannuel Macron que após um período de silêncio e descrição assumiam a sua quota-parte de responsabilidade pelo estado das coisas, reconhecendo o motivo de indignação dos franceses pela degradação de serviços públicos.
“I assume my share of the situation – I may have given you the feeling I have other concerns and priorities. I know some of you have been hurt by my words”
A divergência serenou perante a promessa de Macron de aumentar 7% o salário mínimo do país mas o caso não se fica por aqui com a dimensão do protesto a garantir que perdurará na memória colectiva por muito tempo. O aviso aos governos, a possibilidade de mimica noutros países e a lição sobre contemporaneidade ainda nos deixam com muito por dizer.
Este é o 1º de 3 artigos sobre os Coletes Amarelos.
Coletes Amarelos: redes sociais = revoluções virais
Coletes Amarelos: o imposto verde foi só uma faísca