Entre o muro de Berlim e a Muralha da China com o colectivo Slavs and Tatars no Fórum do Futuro

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Foto de José Caldeira/DR

Entre o muro de Berlim e a Muralha da China com o colectivo Slavs and Tatars no Fórum do Futuro

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No amplo espaço entre o Este do Muro de Berlim e o Oeste da Muralha da China, duas das barreiras mais icónicas que a história da Humanidade edificou, situa-se o foco do trabalho do grupo, que tem como sub-produto do seu trabalho artístico a reflexão e como matéria prima a linguagem e a linguística.

À entrada para a conferência de Slavs and Tatars no Fórum do Futuro, no Porto, a curiosidade era muita mas as expectativas muito pouco concretas. Sabíamos que íamos assistir a uma apresentação especial promovida por um colectivo de artistas, mas arrisco a generalização de dizer que ninguém (ou pelo menos os comuns mortais) sabia muito bem ao que ia. O nome do colectivo — Slavs and Tatars — dizia pouco, o nome da apresentação — “Transliterative Tease” — ainda menos, e só no prospecto do festival surgiam as primeiras pistas: em foco estaria a linguagem e o seu potencial enquanto instrumento político.

A imagem que acompanhava e antecipava o evento mostrava uma cara estilizada em 3D, a de Ataturk, o primeiro presidente da República da Turquia, com a legenda “Who you callin’ a romanizer” e, sem que pudéssemos prever, era a pista mais concreta para aquilo que íamos ouvir. O representante do colectivo (que aqui não nomearemos para manter o espírito do grupo que evita identificações pessoais para que a sua obra fale sempre mais alto) assumiu a apresentação depois de uma breve introdução feita por Eduarda Neves, da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e rapidamente nos sossegou. Não termos percebido grande coisa, fazia parte do plano; desde a escolha do nome – traduzindo, “Eslavos e Tártaros” – à do descritivo do grupo.

Slavs and Tatars is a faction of polemics and intimacies devoted to an area east of the former Berlin Wall and west of the Great Wall of China known as Eurasia.

Foto de José Caldeira/DR

No amplo espaço entre o Este do Muro de Berlim e o Oeste da Muralha da China, duas das barreiras mais icónicas que a história da Humanidade edificou, situa-se o foco do trabalho do grupo, que tem como sub-produto do seu trabalho artístico a reflexão e como matéria prima a linguagem e a linguística. É nesta contínua junção de opostos que se situa, como nos disse, a verdadeira modernidade: “modernista não é só o Elon Musk, como se ouve falar, mas são sobretudo pessoas como o Baudelaire”,  que inovaram na linguagem fazendo-nos experimentar diferentes sensações. É por aí que os Slavs & Tatars seguem também.

Como ilustrou na sua apresentação com a imagem da lenda do mundo árabe Nasruddin, os Slavs and Tatars são o exemplo vivo de que a inovação e a modernidade nem sempre estão à nossa frente. Nasruddin montava o seu burro ao contrário; na mesma lógica com que os Slavs se alinham com a contemporaneidade mantendo um olhar sobre o passado, materializado no estudo de textos e formas de expressão antigas, muito antigas; tendo como especial foco as línguas turcomanas praticam aquilo que chamam de anti-modernismo com vista ao progresso, uma visão propositadamente desalinhada que se pode sintetizar numa pequena anedota explicativa da mania de Nasrudin montar ao contrário. Quando era questionado, diz-se que o sábio respondia “se vamos juntos, qual é a vantagem em estarmos a olhar os dois para o mesmo lado?”.

Nasrudin – em turco: Nasreddin Hoca, em turco otomano: نصر الدين خواجه, em persa: خواجه نصرالدین, em árabe: نصرالدین جحا; em urdu: ملا نصرالدین; em usbeque: Nosiriddin Xo’ja, Nasreddīn Hodja; em bósnio: Nasrudin Hodža; em português: Nasredin) – é uma uma lenda sobre um filósofo que terá vivido no século XIII, amplamente conhecido em todo o Médio Oriente, personagem de centenas de pequenas de histórias infantis e anedotas.

Slavs and Tatars desafiam com a sua visão desalinhada a linearidade do progresso que a contemporaneidade vai enraizando nas nossas cabeças. Servem-se de exemplos altamente singulares e, na maioria dos casos, com centenas de anos de história para criar novas leituras dos fenómenos presente – literalmente. O grupo começou como uma espécie de editora radical e independente, publicando livros de investigação sobre o progresso das línguas, dos alfabetos e até de sons como o khhhhhhh ou os anasalados, e mesmo quando é convidado a expor reflecte sobre esta vertente. A verdade é que as suas investigações chegam a pontos de curiosidade que só uma verdadeira obra de arte segue. Para dar um exemplo – e dos simples –, o artista falou-nos do povo da Madagáscar e da forma como a sua língua, o Malagasy, se expressa sobre o tempo de forma absolutamente diferente. Na sua forma de interpretar a realidade, exposta na linguagem, o futuro é representado como estando atrás e o passado como aquilo que está à frente – como se fosse o tempo a mover-se sobre nós e não nós sobre o tempo.

“Dig the booty”, peça do colectivo Slavs & Tatars
“Hymns of no resistance”, peça do colectivo.
Hymns of No Resistance features classic and cult pop songs revised to address issues of territorial dispute, language, and geopolitics within greater Eurasia.

A apresentação partiu daí para uma série de exemplos mais complexos de como a linguagem pode ser estrutural e, sobretudo, estruturante de relações, ao ponto de se tornarem bastiões políticos. “Transliterative Tease” debruçou-se sobre as línguas turcomanas e países como o Azerbeijão e o Uzbequistão pela sua especial riqueza histórica e filológica, mas em abono do entendimento actual podemos pensar por exemplo no processo catalão, embora neste caso não acha disputa sobre um elemento importante, o alfabeto.

Foto de José Caldeira/DR
Foto de José Caldeira/DR

Viajou-se da Sibéria à Turquia, do Islão político a Marx, com várias nuances históricas, filosóficas e até humorísticas:

  • “As grandes mudanças acontecem geralmente nas pontas das sociedades porque no centro é onde se concentra o poder.”
  • Porque é que são os muçulmanos a ficar com os recursos todos? Porque não dar aos cristãos só para ver o que eles fazem?”
  • “Um país, três gerações, predominância de três alfabetos diferentes geram um generational gap.”
  • “Khlebnikov era tipo o Notorious B.I.G.”

O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!
You who laugh with laughs, you who laugh it up laughishly
O, laugh out laugheringly
O, belaughable laughterhood – the laughter of laughering laughers!
O, unlaugh it outlaughingly, belaughering laughists!
Laughily, laughily,
Uplaugh, enlaugh, laughlings, laughlings
Laughlets, laughlets.
O, laugh, laughers!
O, laugh out, laughers!

Se a apresentação principal pode ser vista no YouTube, as perguntas e respostas no final ficaram no Fórum do Futuro. Ainda foram trocadas algumas impressões construtivas sobre a morte da filologia, sobre a importância de não acharmos que do nada podemos ser uma sociedade pós-religiosa depois de milénios de história, e sobre como a tecnologia e a internet são ferramentas extraordinárias por permitirem traduzir de uma variedade considerável de alfabetos com eficiência.

Índice

  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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