Porque os eSports não são brincadeira. Um artigo a sério

Porque os eSports não são brincadeira. Um artigo a sério

15 Novembro, 2018 /
Foto de Jamie McInall via Pexels

Índice do Artigo:

É importante cada pessoa com responsabilidade institucional, parental e social conhecer o meio em clara expansão e que directa ou indirectamente irá impactar com a vida em sociedade.

“Existem aí umas coisas novas chamadas eSports e gaming. É o futuro, acreditem, mais tarde ou mais cedo toda a gente vai estar a par destas questões.” Todos nós já ouvimos alguém ter este tipo de discurso nos últimos anos, colocando os desportos e a competição electrónica num futuro próximo mas uns degraus acima do presente.

Acontece que o presente e a realidade contempla os eSports como a tendência juvenil e recém adulta no entretenimento e no desporto. Mais do que nunca é importante perceber como se chegou aqui, o que é a profissionalização de um atleta desta modalidade e a projecção mediática e económica do desporto electrónico no geral e em Portugal.

O antes e o agora

Os videojogos e o gaming não são conceitos novos nem pertencentes a este século. Desde o aparecimento das primeiras consolas e dos primeiros computadores, a componente de entretenimento começou a ganhar matriz acompanhando a natural evolução da tecnologia. A maior mudança deu-se a partir do momento em que o acesso à internet conheceu o fenómeno da massificação. Com a conexão de cada habitação à rede, os utilizadores ligaram-se entre eles e a indústria desenvolveu com maior sucesso a componente online, acompanhando a evolução do principal público-alvo. Desta forma, cada pessoa começava a jogar o produto que quisesse com amigos, conhecidos e desconhecidos sem precisar de sair de casa e de uma forma muito fácil e económica – mais do que as velhinhas lan houses.

Apesar da nostalgia e de ser o jogo mais vendido de sempre (495 milhões de cópias), o Tetris já faz parte do passado. O panorama actual do gaming é dominado sobretudo por produtos que possuem uma forte indústria de eSports, jogadores profissionais, streamers de Twitch e canais de YouTube. Jogos como Fortnite, Counter Strike: Global OffensivePlayerUnknown’s Battlegrounds, Overwatch, Dota 2 e League of Legends são alguns exemplos que cabem neste paradigma. Fora da competição expressiva, Grand Theft Auto 5 e Minecraft continuam a ser autênticos fenómenos na preferência dos experientes ou dos novos jogadores.

Foto de Sean Do via Unsplash

O atleta profissional de eSports

A gravitar à volta do paradigma actual está o jogador. Antes um indivíduo jogava por puro entretenimento e eram raros os exemplos de pessoas que levavam o produto electrónico à vertente competitiva. Hoje em dia, um jogador pode ponderar a profissionalização se assim o trabalho e o talento o premiarem. Como em qualquer desporto, a meritocracia reina na hora de cada um desejar dar este passo na vida profissional.

Naturalmente tudo começa no gosto e na diversão que determinado jogo proporciona ao utilizador. As horas despendidas crescem, as amizades virtuais cimentam-se e a experiência de jogo contempla um determinado nível a que se chega. Destes passos à criação de equipas e à participação em torneios é um degrau curto. Se há uns anos a vertente competitiva internacional invejava os profissionais em solo nacional, hoje em dia o leque é mais diversificado e a “manta” mais comprida, abrangendo mais jogadores.

Ser profissional implica necessariamente colocar o jogo acima de tudo o resto e a ser remunerado por esta escolha de carreira. A rotina de um jogador profissional está intimamente ligada aos compromissos e fontes de receita que possui. Desde logo, é necessário treino individual e prática com a equipa/clube/organização/clã a que se pertence, pois à partida é esta entidade que emprega o jogador. Este treino ocorre muitas vezes em Gaming Houses, casas onde vivem os jogadores, destinadas à potencialização máxima do rendimento. De seguida seguem-se os compromissos comerciais seja através de patrocínios, comissões de produtos no jogo ou presenças em eventos. Ultimamente, o profissional dos eSports encontrou no stream (Twitch) uma nova fonte de receita, levando a que inclusive certos jogadores tenham deixado a actividade principal em detrimento do sucesso das transmissões. Do lado de quem assiste, é extremamente apelativo assistir a um “programa” em directo com uma estrela de um determinado jogo.

Naturalmente cada jogo possui as suas especificações, levando a que estas indicações possam ser flutuantes. Um jogador de FIFA (colocando de parte o modo ProClubs) terá de aperfeiçoar ao máximo a sua técnica individual, não sendo necessário uma estratégia colectiva. Já no Counter Strike: Global Offensive, a dinâmica e estratégia de equipa é muitas vezes mais importantes que a skill individual do jogador.

Ciclo mediático e económico

O crescimento e o sucesso económico está directamente relacionado com o público alvo em que os eSports penetram. Adolescentes e jovens adultos (millennials) têm hoje o mesmo nível de interesse por eSports do que por desportos tradicionais (27%). Esta tendência, que de forma natural se irá acentuar, é o ponto de começo de um círculo virtuoso. Os jovens assistem massivamente aos torneios de forma presencial ou via transmissão, as marcas querem comunicar junto destes, patrocinam os eventos, mais dinheiro é gerado, aumentam os prize moneys e as remunerações às equipas e atletas crescem.

Não é difícil percepcionar o nível a que estamos. Quando observamos grandes marcas mundiais a patrocinar equipas e competições fica claro que o retorno que os eSports fornecem está garantido. Além do imediato, as marcas acreditam que esta aposta irá reflectir-se mais tarde, quando os jovens de hoje passarem a ser os adultos de amanhã. Por outro lado, se existem empresas que o mercado reconhece a patrocinar esta temática, a reputação dos desportos electrónicos cresce exponencialmente e novamente o círculo virtuoso adensa-se.

A indústria não se faz apenas de jogadores e organizações. Os novos media especializados na área têm feito um trabalho importante na divulgação e informação de todas estas questões. Os eSports possibilitaram a adaptação de jornalistas e foto-jornalistas focados nos jogos electrónicos de competição, sendo estes uma peça importante no auxilio a jogadores, equipas e organizações.

Além da classe jornalística, os streamers e youtubers têm tido um papel notável na divulgação e propaganda da modalidade. Seja através de uma abordagem mais light ou mais densa, o gosto pela lógica do jogo tem sido alimentado por estes conteúdos e por estas pessoas que fazendo o seu caminho tornam-se profissionais na área. Os hábitos de consumo de entretenimento de muitos jovens passam diariamente por acompanhar na Twitch o melhor jogador português de Fortnite ou por seguir atentamente as indicações do melhor analista português de Counter Strike.

Preocupações e inquietações

As preocupações e inquietações no seio dos desportos electrónicos são inúmeras e apresentam desafios distintos. Reconhecer os eSports como um desporto é o principal desafio e que mais resistência tem enfrentado. Apesar da sensação geral que será uma questão de tempo até este pensamento criar raízes, não tem sido fácil para as instituições e personalidades públicas fora do meio darem o seu consentimento. Também por isto foram importantes as palavras do Primeiro-Ministro dinamarquês a quando a realização de um torneio de CS:GO em Copenhaga.

Na lógica de tornar mais conhecido e inclusivo para o grande público, existe a hipótese dos eSports integrarem os Jogos Olímpicos. Ralf Reichert, co-fundador e CEO da ESL, a maior empresa de eSports do Mundo, referiu recentemente no Web Summit que existe essa possibilidade mas que o modelo final não estará ainda definido. Apesar do passos que têm sido dados, não existe uma certeza cabal que o Comité Olímpico Internacional esteja firme na decisão de dar luz verde a esta ideia.

Um outro desafio que se coloca à indústria está relacionada com o desempenho e saúde dos atletas. Um jogador profissional de alto gabarito tem atualmente uma carga muito intensa quando está em actividade. Esta intensidade de trabalho coloca problemas de exaustão aos jogadores levando em certas situações à retirada de competição. A reforma precoce dos gamers profissionais não se deve à diminuição das capacidades intelectuais, mas sim ao cansaço acumulado que muitos não sabem gerir nem moderar. A solução adoptada pelo meio e pelas equipas tem passado pela maior profissionalização do staff que acompanha as estrelas das competições, fornecendo cuidados médicos, psicológicos, alimentares e físicos no seu geral – tal como aos atletas de desportos tradicionais de alta competição.

A batota é uma preocupação geral em qualquer modalidade e os eSports não são excepção. As autoridades e os próprios organizadores das competições têm ao longo do tempo criado mecanismos para controlar a boa fé dos jogos e dos jogadores. Além dos problemas de cheating, têm sido dados passos sólidos na regulação do atleta através de testes anti-doping e na fiscalização de match fixing.

Foto de Sean Do via Unsplash

Os eSports à beira-mar plantados

Portugal já não é um cantinho da Europa que tem apenas sol, comida boa e praia. Também nos eSports se reflecte o boost positivo que o país está a sofrer sobretudo na componente reputacional. Portugal é hoje um local para que as empresas olham com particular satisfação na hora de instalar um evento, criar uma marca ou fixar os escritórios.

Este novo pensamento pode ser exemplificado com a realização da final do Blast Pro Series, um grande torneio internacional de CS:GO que terá lugar no Altice Arena em Dezembro deste ano. É a primeira vez que um evento desta magnitude escolhe Lisboa para colocar à prova as melhores equipas de CS. O prize money desta final serão 250 mil dólares pelo que se pode começar a dizer-se que Portugal está na rota dos grandes torneios de eSports do planeta.

Não só da reputação geral do país se faz o sucesso dos eSports em solo nacional. Há cerca de dois anos, a estação pública de rádio e televisão portuguesa (RTP) teve a visão de apoiar os jogos electrónicos ao criar a marca RTP Arena. Além do magazine semanal que resume o que se passa nacional e internacionalmente acerca desta matéria, a secção apoia os torneios nacionais de norte a sul do país seja através da transmissão via Twitch, seja com presença no próprio local. Apostaram no nicho com suporte mediático e hoje podem dizer que ganharam essa aposta.

Num apoio mais direccionado ao futebol electrónico, a FPF criou uma secção de eSports na qual pretende apoiar os talentos nacionais em torno do FIFA e de alguma forma, criar condições para que os melhores jogadores nacionais compitam ao mais alto nível nas competições internacionais do jogo produzido pela EA.

As possibilidades de Portugal nos eSports não se esgotam aqui. Será importante pensar num futuro próximo as potencialidades em acolher equipas e jogadores dos mais variados jogos e fornecer-lhes as condições necessárias de competição. Os Estados Unidos da América são o território por excelência na hora de uma equipa profissional se fixar para viver, trabalhar e produzir. Todavia as dificuldades em obter vistos de trabalho e condições económicas vantajosas obriga por vezes a rever objetivos. Desta forma, e estando Lisboa na rota de grandes torneios, poderá ser relevante pensar em atrair grandes equipas.

Pensar os eSports

Termino como comecei. Os eSports são o presente e será importante abordá-los como o modo de estar e ser de uma geração. Ao ignorar um fenómeno social e uma modalidade desportiva, estamos a querer não enfrentar a realidade, que comporta tanto desafios e problemas como soluções e pontos positivos. Desta forma, é importante cada pessoa com responsabilidade institucional, parental e social conhecer o meio em clara expansão e que directa ou indirectamente irá impactar com a vida em sociedade.

Autor:
15 Novembro, 2018

O Rui Sousa é licenciado em Ciência Política pelo ISCSP e mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação no ISCTE.

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