O poema de Voltaire sobre o terramoto de 1755

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Imagem via Gallica.bnf.fr / Bibliothèque Nationale de France

O poema de Voltaire sobre o terramoto de 1755

Chama-se "O Poema sobre o Desastre de Lisboa" e espelha o impacto que a tragédia teve por toda a Europa.

É provável que tenhas alguma ideia da grandeza do terramoto de 1755, por tudo o que a história nos ensinou. Mas pela distância – e até por algum desinteresse generalizado que incompreensivelmente encobre o tema – é menos provável que tenhas noção da dimensão e impacto que o acontecimento teve para Portugal e para o mundo.

Sim, porque a extensão foi global. O sismo influenciou de forma determinante muitos pensadores europeus do Iluminismo. Foram vários os filósofos que fizeram menção ao terramoto nos seus escritos e teorias, do quais se destacam nomes bem famosos como Voltaire, Rosseau ou Adorno.

Além de mencionar a tragédia lisboeta no seu Candide, Voltaire tem um poema dedicado à grandeza do sismo. Chama-se Poème sur le désastre de Lisbonne (Poema sobre o desastre de Lisboa). A arbitrariedade da sobrevivência marcou o autor que satirizou a ideia, defendida por autores como Gottfried Wilhelm Leibniz e Alexander Pope, de que “este é o melhor dos mundos possíveis”.

Com a catástrofe portuguesa, Voltaire viu ruir todas as suas concepções do Mundo vigentes à época, pois considerava que tal fenómeno jamais poderia ter ocorrido se a Terra fosse, como até esse momento se acreditava cegamente, uma mera criação divina, regulada pelos princípios de ordem e harmonia.

O poema vive em livro, editado e traduzido por várias editoras, e vale a pena ser lido para perceber a visão de um dos maiores génios da história, sobre um acontecimento que, tendo acontecido em Portugal, foi visto como uma calamidade por toda a Europa, com repercussões sociais e políticas além fronteira. Fica com um excerto da editora Frenesi, com tradução de Jorge P. Pires.

Ó infelizes mortais! Ó deplorável terra!
Ó agregado horrendo que a todos os mortais encerra!
Exercício eterno que inúteis dores mantém!
Filósofos iludidos que bradais «Tudo está bem»;
Acorrei, contemplai estas ruínas malfadadas,
Estes escombros, estes despojos, estas cinzas desgraçadas,
Estas mulheres, estes infantes uns nos outros amontoados
Estes membros dispersos sob estes mármores quebrados
Cem mil desafortunados que a terra devora,
Os quais, sangrando, despedaçados, e palpitantes embora,
Enterrados com seus tectos terminam sem assistência
No horror dos tormentos sua lamentosa existência!
Aos gritos balbuciados por suas vozes expirantes,
Ao espectáculo medonho de suas cinzas fumegantes,
Direis vós: «Eis das eternas leis o cumprimento,
Quem de um Deus livre e bom requer o discernimento?»
Direis vós, perante tal amontoado de vítimas:
«Deus vingou-se, a morte deles é o preço de seus crimes»?
Que crime, que falta comentaram estes infantes
Sobre o seio materno esmagados e sangrantes?
Lisboa, que não é mais, teve ela mais vícios
Que Londres, que Paris, mergulhadas nas delícias?
Lisboa está arruinada e dança-se em Paris.(…) Ide interrogar as margens do Tejo;
Revolvei os escombros deste sangrento despejo;
Perguntai aos moribundos, nesta morada de pavor,
Se é o orgulho quem clama: «Ajudai-me, Senhor!
Ó céus, tende piedade do humano fadário!»
«Tudo está bem», dizeis vós, «e tudo é necessário.»
Mas quê! O Universo inteiro, sem este abismo infernal,
Sem engolir Lisboa, teria estado em maior mal?(…)

Não, não ostenteis mais a meu coração alterado
Essas imutáveis leis da necessidade,
Essa cadeia dos corpos, dos espíritos, e dos mundos.
Ó sonhos de sábios! Ó desvarios profundos!
Deus tem na mão a corrente, e não está acorrentado;
Por sua escolha benévola tudo é determinado:
Ele é livre, ele é justo, e não é implacável.
Porque sofremos então com um amo justo e amável?

(…)

Elementos, animais, humanos, tudo está em guerra.
Há que reconhecê-lo, o “mal” está sobre a terra:
Seu princípio secreto não nos é de todo conhecido.
Do autor de todo o bem, terá o mal decorrido?

(…)

Um Deus veio consolar a nossa raça alarmada;
Visitou a terra, mas não a mudou em nada!
Diz-nos um sofista arrogante que ele o não pôde fazer:
«Ele poderia», diz outro, «mas havia de o querer:
Querê-lo-ia, sem dúvida;» e, enquanto se apregoa,
Há trovões subterrâneos que vão engolindo Lisboa,
E de trinta cidades dispersam os lambris,
Das margens sangrentas do Tejo até ao mar de Cádis.

Ou o homem nasceu culpado, e Deus pune sua raça,
Ou esse senhor absoluto do ser e do espaço,
Sem furor, sem piedade, tranquilo, indiferente,
De seus primeiros decretos segue a eterna torrente;
Ou a matéria informe, a seu mestre rebelde,
Transporta consigo defeitos tão necessários quanto ela;
Ou Deus nos põe à prova, e esta estadia mortal
Não é senão uma passagem estreita para um mundo eternal.
Aqui experimentamos dores transitórias:
Falecer é um bem que termina as nossas misérias.
Mas quando por fim sairmos desta passagem de agruras,
Qual de nós pretenderá merecer colher venturas?

(…)

Leibniz nunca me ensina por que nós invisíveis,
No mais bem ordenado dos universos possíveis,
Uma desordem eterna, um caos de infelicidades,
A nossos vãos prazeres mistura certas dores que são verdades,
Nem por que é que o inocente, tal como o culpado,
Sofre do mesmo modo este mal desgraçado.
Também não concebo como tudo estaria bem:
Sou como um médico; infelizmente nada sei.

(…)

“Um dia tudo estará bem”, eis aí a nossa esperança;
“Tudo está bem hoje em dia”, eis aqui a ilusão.

(…)

Outrora um califa, chegado à hora em que se falece,
Ao deus que adorava disse então como prece:
«Trago-te, ó único rei, único ser sem limitação,
Tudo o que não possuis na tua imensidão,
Os defeitos, os remorsos, os males e a ignorância.»
Mas poderia haver acrescentado ainda “a esperança”.

Se chegaste até ao fim, esta mensagem é para ti

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