Espaço público como espaço democrático

Espaço público como espaço democrático

É fundamental construirmos uma sociedade a partir dos seus espaços democráticos, caracterizados pelo confronto de mundivisões e que criam um debate denso e vivo, e consequentemente ideológico – é precisamente neste processo que se forma um pensamento crítico em vez de uma reacção histérica às mudanças sociais.

A rua tornou-se cada vez mais um espaço vazio, tanto em termos sociais – no sentido em que é um espaço de múltiplas interacções cujos laços são frágeis – como na sua natureza política, ou seja, é sobretudo um espaço de passagem, perdendo o seu papel reivindicativo de eleição onde podem ocorrer transformações e a democracia luta por prosperar. Partindo de uma análise do discurso neo-liberal, pretendo compreender de que forma ocorre este esvaziamento e quais as consequências para cada um de nós, os cidadãos. Para tal, foco-me em três processos que se complementam e que no último ano tivemos oportunidade de observar, ainda que não sejam uma realidade nova. 

Em primeiro lugar, o direito à manifestação e actividade política foi constantemente questionado durante momentos como as manifestações contra o racismo (BLM), o 1º de Maio ou o comício do PCP; e tal pode ser um sintoma do pensamento neo-liberal: a individualização do sofrimento, a falta de sentido de pertença a um colectivo a partir do qual ocorre uma luta de reivindicação e se constrói uma mensagem e soluções. No caso português, o período de excelência onde tal ocorreu foi na legislatura de Passos Coelho, onde o direito à acção política por parte dos cidadãos – nomeadamente a greve – era visto como um atropelo ao crescimento económico e ao bem geral da sociedade; manifestar-se era, portanto, um acto irresponsável e infantil das esquerdas, como nos elucidou o ex-Primeiro-Ministro: “o caminho que nós temos de seguir é um caminho de muito trabalho, muito afinco para recuperar o país e, portanto, apelo a todas as pessoas que se mobilizem para defender o país e menos para paralisar o país”. Neste momento, em que enfrentamos uma pandemia, termos uma vida política activa é visto como um acto que compromete directamente a saúde pública. Em certa medida, pouco mudou nestes últimos anos, a demagogia tampouco – o desprezo pela acção colectiva é uma marca.

No caso específico das manifestações BLM, estas foram vistas, inclusive em Portugal, como uma irresponsabilidade de um conjunto de jovens impulsivos que não se sabem integrar na sociedade ou que não conseguem esperar por um momento mais oportuno (e seguro) para demonstrarem o seu descontentamento: “a vossa manifestação vale a morte de x pessoas?”, perguntam alguns no espaço público. Ora, a questão está tão perigosamente colocada que responsabiliza constantemente a vítima, característica muito comum neste tipo de discurso. Nesta lógica, e como nos descreve Slavoj Zizek em Lenine 2017, a liberdade liberal centra-se na “noção do sujeito psicológico dotado de propensões naturais, que tem de concretizar o seu verdadeiro Eu e todo o seu potencial, e que é, consequentemente, o derradeiro responsável pelo seu próprio fracasso ou sucesso”. Assim, a liberdade (neo-liberal) que é intrínseca ao indivíduo não é de se manifestar quanto ao seu destino, ou seja, a situação em que se encontra e que se deve, de forma geral, a agentes externos, como o facto de viver numa sociedade estruturalmente desigual, mas sim às suas decisões ao longo da vida ou, no limite, a factores transcendentes como a genética ou o dom. A negação da possibilidade de desobediência ao sistema (ou, pelo menos, uma obediência crítica), que pode corresponder a exigir mais à entidade patronal ou ao Governo, constitui uma característica basilar do neo-liberalismo, cujo âmago é constituído por uma retórica de culpabilização individual do cidadão na sua actividade colectiva, como já foi referenciado, e também por um esvaziamento da sua natureza política. Assim, o dia-a-dia do indivíduo deve ser pautado pela batuta do Ministério da Verdade: a matemática burocrática pré-ideológica, ou seja, que antecede o próprio debate político e o constringe. Não é por acaso que no meio da disputa pela hegemonia política, o Parlamento Europeu tenha equiparado o comunismo ao fascismo, transmitindo a ideia de que os extremos se tocam e ambos são moralmente condenáveis, e no centro, seja o que isso for, encontra-se a perfeição, o equilíbrio e as pessoas sensatas que tomam decisões com base na racionalidade científica para o bem comum. Dito por outras palavras, a utopia (distópica) neo-liberal será um mundo onde é concedido aos cidadãos o direito de se manifestarem somente quando a economia estiver pulsante – penso ser desnecessário explicar a contradição subjacente a esta ideia.

O segundo processo que considero relevante analisar tem que ver com a aplicação constante de um estado de excepção, onde as diversas acções políticas anteriormente referidas tiveram o seu palco. Esta aplicação resulta na normalização de um determinado grau de isolamento, de um aumento da ansiedade geral e de hiper-individualização dos projectos que anteriormente eram realizados a partir da comunidade. Para além disso, em diversas situações, trata-se da perda do direito à manifestação, uma ferramenta fundamental dos trabalhadores e dos cidadãos em geral para protestarem em tempos de crise; como bem notou Giorgio Agamben em Estado de Excepção: “Logo que tomou o poder (…), Hitler promulgou, no dia 28 de Fevereiro, o Decreto para a protecção do povo e do Estado, que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich pode ser considerado, do ponto de vista jurídico, como um estado de excepção que durou doze anos (..) O estado de excepção [do totalitarismo moderno] apresenta-se, nessa perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e absolutismo”. Naturalmente não está em causa as posições dos diversos governos dos países democráticos – cujas decisões revelam apenas o desespero ao tentarem travar a pandemia -, mas somente o efeito secundário da constante banalização da perda de direitos, bem como de um estado de incerteza em relação ao futuro, em que o Estado nos é apresentado como uma figura autoritária e imprevisível e a quem pouco podemos exigir. 

Se as consequências anteriormente analisadas têm um efeito prolongado, mas não imediato, não podemos afirmar o mesmo da migração da interação social para o digital, onde se individualiza o pensamento, a opinião e o papel de cada um de nós na sociedade. O isolamento numa bolha física (as casas) faz com que o confronto com a realidade seja sucedido por uma reacção constante e exagerada, sendo construída uma narrativa de caos global nas nossas mentes. É precisamente na constante circulação de informação digital sem nenhuma mediação que o indivíduo é deixado num estado de anomia, em que as instituições vão desaparecendo e sendo substituídas por espaços e agentes, sejam eles a Google ou o Facebook, os quais não conhecemos verdadeiramente, pois não foram política e democraticamente construídos e escrutinados. Quais os valores pelos quais se regem (para além de se publicitarem como sendo o farol da liberdade e da democracia) e qual a ideologia por detrás do algoritmo? Tendo em conta que não contribuímos democraticamente para a formação e desenvolvimento deste grande palco digital, somos somente espectadores passivos num teatro global ao continuarmos a reagir como os espectadores das primeiras exibições de filmes com um comboio a chegar à estação – caímos das cadeiras em total desespero. 

A substituição do espaço público pelo espaço digital mina a construção de uma comunidade que se rege pelo confronto de diferentes mundivisões e uma das razões para isso acontecer deve-se às próprias regras do sistema. Por exemplo, as redes sociais limitam o número de caracteres nas nossas interacções (não é por acaso que cada vez mais os jovens se socorrem de memes, os verdadeiros slogans do nosso século, simplificando o seu discurso) ou criam uma narrativa hiper-sensível sobre a História, como é o caso da censura ou proibição de imagens que espelham a componente da violência nos regimes ditatoriais, não sendo possível sermos confrontados com certos actos das nações ocidentais. Vale a pena recordar o processo de desnazificação operado pelos EUA depois da Segunda Guerra Mundial, em que obrigaram os alemães, como um povo, a confrontarem-se com os actos perpetrados pelo regime nazi nos campos de concentração. Podemos discutir a moralidade e eficácia desta decisão, mas a distorção de imagens (recorrendo ao blur) ou a sua censura total estão nos antípodas do processo de desnazificação e também por isso devemos questionar-nos de que forma estamos a construir uma memória colectiva. 

O terceiro e último processo centra-se na privatização do espaço público. E tal levou a algumas discussões acesas no Reino Unido, onde esta prática é mais comum, ao ponto de, só na cidade de Londres, mais de quarenta espaços terem sido privatizados (parques, ruas, etc,). Assim, mesmo que a discussão possa não corresponder à realidade em todos as sociedades ocidentais, vale apena analisar como se tratando de um caso extremo, mas não menos real – trata-se de uma questão ideológica com consequências na forma como os cidadãos olham para o espaço público e, consequentemente, para a democracia. 

É inegável que cada vez mais o padrão do dinheiro domina o nosso consciente e as nossas acções, ao ponto de a privatização de um espaço público significar, consequentemente, a sua monetização – não é por acaso que as cidades são caracterizadas por uma crescente poluição visual: veias principais são preenchidas por cartazes publicitários que estimulam os nossos sentidos sem descanso. No entanto, mais do que uma empresa ou um particular deter o nome de uma rua e satisfazer os seus desejos exóticos e megalómanos ou de lucrar monetariamente com essa aquisição, trata-se de compreender em que medida a comunidade perde com esse processo. Por um lado, extingue-se o direito à manifestação, tendo em conta que passa a ser um espaço privado (ainda que sem uma delimitação física e clara), por outro, controla-se a actividade jornalística – por exemplo, os jornalistas só podem fazer reportagens mediante a autorização do dono daquele espaço; suponho que tais não sejam aceites caso manchem a sua imagem. Estas são duas das principais críticas feitas a este processo e são cada vez mais relevantes nos dias de hoje.

De um ponto de vista ideológico, estamos perante um processo que despolitiza o espaço público, ou seja, suspende o seu carácter democrático que consiste na troca de opiniões, de reivindicação de direitos, de livre circulação de informação e de pessoas. Na pretensão de criar um espaço apolitizado, isto é, neutro e esteticamente moderno, sucede-se o oposto; o objectivo, na realidade, visa a hegemonização de uma visão do mundo, onde o cidadão tem o direito de ser sufocado com produtos e onde ele próprio é uma mercadoria ambulante. Assim, a partir do momento em que paramos de controlar o espaço público, no seu plano simbólico e político, perdemos o estatuto de cidadãos. Vale a pena recordar o conflito em torno das estátuas no espaço público. Existe um vazio de discussão na urbanização das cidades, onde uma parte dos cidadãos já não se revê nas posições tomadas e na mercantilização do espaço simbólico – a questão não está só em não nos revermos na forma como, por exemplo, a estátua do Padre António Vieira foi esculpida, denotando um paternalismo racista; não, incide precisamente na falta de transparência e democracia no processo em si, revelando as relações de poderes não só económicas, mas, acima de tudo, ideológicas: quais são os valores que nos definem como comunidade ou, por outras palavras, quem é que decide quais são os nossos valores. 

É fundamental construirmos uma sociedade a partir dos seus espaços democráticos, caracterizados pelo confronto de mundivisões e que criam um debate denso e vivo, e consequentemente ideológico – é precisamente neste processo que se forma um pensamento crítico em vez de uma reacção histérica às mudanças sociais. Em contrapartida, ainda que o teatro político e mediático, bem como o confronto cultural, seja cada vez mais condensado no espaço digital, pouco resultará disso senão a materialização de uma massa desconexa e demasiado imprevisível, incluindo para os próprios participantes. Assim, dificilmente ocorrerá a “arte do impossível”, que é sempre convencer quem esteja do outro lado da barricada a juntar-se a uma massa orgânica e acreditar na ideia de uma sociedade progressista – para os agentes democráticos esta deve ser uma ideia basilar da sua acção política.

João Pinho

Proveniente do interior desertificado e aburguesado na capital, através de um olhar sociológico, penso sobre as dinâmicas sociais e políticas do país. @j__pinho

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